ANÁLISE
Este ano de 2018 tem sido histórico para a aviação mundial: a Airbus englobou parte da Bombardier e a Boeing seguiu o caminho e faz um grande acordo com a Embraer. Na mira das duas gigantes está, dentre outras coisas, o mercado regional que até então era dominado pelas fabricantes do Brasil e Canadá.
E é daí que surgem frequentes questionamentos dos nossos leitores: “Porque a Boeing não fez uma versão modernizada do 717 e colocou no mercado regional?” ou “A Airbus deveria fazer a versão Neo do A318, tem aeroporto regional que não comporta o A319”.
Pois bem, não é tão simples assim. Para começarmos é preciso entender que o conceito de Aviação Regional nos EUA (também no Canadá e parte da Europa) é bem diferente do conceito brasileiro ou sul-americano. Aqui voos regionais remetem a Passaredo, a MAP Linhas Aéreas, as finadas RioSul e Pantanal.
No quesito aeronave se remente aos ATR’s, aos Embraers Bandeirante, Brasília, E135, E145, aos checos LET 410, além dos Cessnas Caravans que têm feito voos regulares no Nordeste e em Minas Gerais atualmente, e historicamente voaram na TAM Express e outras.
Nos EUA é diferente: aviação regional é aquela operada por jatos como os CRJs e E145/E175 para cidades médias e pequenas, entre 60 mil e 200 mil habitantes. Já aeronaves menores como os Caravan, Brasília, BAe J41t pertencem às Commuter Airlines, que atendem cidades menores ainda e distantes de grandes aeroportos. Essas linhas aéreas “comunitárias” são subsidiadas pelo governo, o que não acontece com as regionais.
As Regionais, como citado acima, voam jatos em sua maioria – a única exceção atualmente são turboélices Q400 na Alaska Horizon. Com jatos, possuem um custo mais elevado apesar de levarem mais passageiros e voarem mais rápido. Para manter uma operação viável em rotas que não se justificaria o custo desses aviões, ou onde não são permitidos voos das Commuters, foram criadas as subsidiárias regionais, que são na verdade empresas terceirizadas.
Elas, na verdade, não foram criadas para promover a terceirização. Todas as regionais que prestam serviço para as grandes aéreas são antigas, mas acabaram por entrar num modelo de negócio novo.
Exemplo: a Delta Airlines escolhe a SkyWest para operar sob a marca Delta Connection, sendo que a Skywest é responsável por toda a manutenção, tripulação e custos associados ao voo. A Delta, por sua vez, escolhe as aeronaves que serão operadas, as rotas, horários e comercializa as passagens dos voos da Delta Connection. A Delta paga para a Skywest um preço fixo pelo voo realizado, independente de ocupação, atrasos e outros custos. Com esse modelo, a operação resulta em outro fator característico: baixos salários.
Voe Jato e Ganhe Pouco
O salário mínimo no estado do Michigan, por exemplo, é de $9,25 dólares por hora, algo em torno de $1,480 dólares mensais considerando 40 horas trabalhadas por semana (a jornada mais comum nos EUA). E um co-piloto/primeiro-oficial da Endeavour Air baseado em Detroit, voando a família CRJ-200/700/900 para a Delta Connection, ganha $50,16 por hora voada.
Até aí seria um bom salário, bem acima do mínimo. Porém, assim como no Brasil ou qualquer outro país, existe o limite legal de voos por mês. Nos EUA o limite é de 100 horas e no Brasil é de 85 horas para jato. A Endeavour garante que o piloto irá voar no mínimo 75 horas por mês. Sendo assim, seu salário é de no mínimo $3.762 dólares, duas vezes e meia o salário mínimo no estado.
Nas melhores das hipóteses, a remuneração chega a 3.8x um salário mínimo, o que não é tanta coisa assim. No Brasil um mesmo piloto voando aeronave similar em determinada companhia ganha seis vezes mais que o salário mínimo. Óbvio que o poder de compra nos EUA é maior devido à menor incidência de impostos e etc. Mas, ainda assim, é algo relativamente ruim.
Falando agora de experiência pessoal (do autor do post neste caso), nenhum dos meus colegas de universidade que estão voando na regional moram sozinhos. Todos dividem casa ou apartamento com outros pilotos ou, em alguns casos, moram com os pais que, por sorte, têm casa perto de suas bases. Não é incomum ir aos aeroportos como o de Los Angeles e ver vários trailers nos estacionamentos mais afastados. É a casa de muitos pilotos.
Os 75 assentos e a famigerada Scope Clause
Antes de se perguntar como os pilotos se sujeitam a isso (nem queiram falar dos comissários…), muitos perguntam ainda: porque as aéreas não terceirizam tudo e cortam custos em todos os seus voos? Pois bem, pilotos podem ser loucos mas não são bobos.
Este movimento de crescimento das regionais e essa técnica de criar subsidiárias começou a “bombar” no final dos anos 80. Vendo isso se aproximar, os pilotos que já voavam aeronaves maiores como o Boeing 737 se organizaram e, juntamente com o sindicato, colocaram regras para as regionais. Uma convenção coletiva foi criada e englobava a aviação regional.
Seguindo nosso exemplo acima da Delta, o acordo de convenção da companhia regional é feito da seguinte maneira segundo dados do MIT:
- No máximo 255 aeronaves entre 51 e 70 assentos
- No máximo 120 aeronaves entre 71 e 76 assentos
- Nenhuma aeronave com mais de 76 assentos
- 85% das rotas com menos de 1.448km (900 milhas) de distância
- 90% dos voos devem partir ou chegar em hubs da companhia
Estes números são ajustados de acordo com o crescimento da companhia, bem como quando a convenção expira e é renovada ou feita uma nova. E esta limitação de 76 assentos, além de outros limitantes como peso máximo de decolagem que se aplica a outras empresas aéreas, é o grande nicho da Embraer com o E175.
Nicho que a Bombardier apenas atingia com os CRJ-200/700/900, mas abandonou já que o então CSeries CS100, hoje Airbus A220-100, é bem maior e leva no mínimo 100 passageiros. Seria uma grande oportunidade para a Embraer. Porém a fabricante brasileira está tendo problemas em encaixar o E175-E2 dentro dos requisitos da Scope Clause, e espera que o convenção mude ou tenha uma flexibilização.
A falta de pilotos, causada por pilotos?
Não é novidade para todos que, de maneira global, existe uma certa falta de pilotos. Vale lembrar que não é simplesmente falta de pilotos, mas sim falta de pilotos qualificados e de certas nacionalidades, como dos países da Ásia por exemplo. (Por favor não caia no conto do dono do Aeroclube ou Escola de Aviação que lhe apresentar alguma matéria nossa falando que o mundo precisa de milhares de pilotos e que você será um deles facilmente).
Um dos grandes problemas é o custo alto para a formação, quase como um curso de Medicina, mas sem uma perspectiva de trabalho de um Médico após a formação. E nos EUA este problema foi agravado depois de 2009.
Em 12 de fevereiro de 2009, um Bombardier Dash-8 Q400 da Colgan Air operando como Continental Connection (hoje United Express) estava voando do hub da companhia em Newark, New Jersey, para Buffalo, no estado vizinho de Nova Iorque. Fevereiro é um mês que ainda neva bastante no Norte da costa Leste americana, e no dia o tempo estava bastante ruim.
Ao se aproximar para Buffalo a aeronave caiu a cinco quilômetros do aeroporto, vitimando as 49 pessoas a bordo e uma em solo. Investigações da NTSB apontaram que a aeronave entrou em estol (perda de sustentação) antes de cair, mas todos os sistemas de aviso estavam funcionando, inclusive sonoros e de vibração no manche da aeronave.
A caixa-preta apontou que o comandante e a co-piloto tomaram decisões totalmente contrárias ao receber o aviso de estol: o comandante puxou o manche fazendo com que a aeronave levantasse o nariz mais ainda e perdesse mais velocidade. E para piorar, a co-piloto recolheu os flaps que manteriam uma maior sustentação.
Resultado: um ano após o acidente o congresso e a FAA mudaram os requisitos para pilotos de linha aérea. Antigamente (e assim como o Brasil atualmente) era necessário apenas ter a licença de Piloto Comercial (150 horas no Brasil e 250 horas nos EUA) válida para voar em companhia aérea. A partir de 2010 este requisito foi para 1.500 horas de voo, 6x a mais!
Foi (e ainda é) um soco na barriga de muitos pilotos em formação. Existem reduções para os requisitos, como por exemplo ser piloto-veterano das forças armadas (reduz para 750 horas), ser Bacharel em Aviação (1000 horas) ou Tecnólogo em Aviação (1250 horas). Ainda assim é um longo caminho entre as 250 horas e o mínimo.
Os baixos salários, alto custo e requisitos altíssimos causam uma grande falta de pilotos nos EUA. O salário citado anteriormente pode quase dobrar, chegando a $6.000 dólares mensais devido aos bônus que muitas aéreas oferecerem (já me ofereceram $5.000 de bônus de entrada). Ainda assim existe dificuldade de conseguir profissionais devido ao custo de formação (até $400 mil somado o Bacharelado).
Mas o principal fator que atualmente dificulta a situação da aviação regional são as oportunidades melhores: quando se chega nas mil horas (normalmente através de voo de instrução), o piloto já tem uma certa rede de contatos e um bom “QI”. Desta forma, muito provavelmente alguma empresa de táxi aéreo ou de aviação executiva vai oferecer uma oportunidade para um emprego mais rápido e com salário menor do que de regional.
Aos que mesmo assim preferem continuar e seguir o sonho de voar em linha aérea, existem também seus bônus: benefício passagem, promoção para Comandante garantida em três anos e entrevista garantida com a companhia aérea mãe para voar Boeing 737 ou Airbus A320.
Ainda assim é um mercado complexo e desafiador, e que muitos temem que possa entrar em colapso devido às diversas regras. Existem os que defendam esta regra das 1500 horas, como o Comandante Sully, muito ironizado dentro da aviação regional por sua posição. Mas também existe quem defenda o modelo das subsidiárias regionais, que permitiram voos regulares em diversas cidades menores.