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Com tantos aviões intimidadores, foi um Cessna 172 que teve papel decisivo no fim da Guerra Fria

A Guerra Fria viu a exibição de inúmeros aviões poderosos, dotados de tecnologias jamais antes vistas. No entanto, foi um pequeno avião monomotor Cessna 172 e seu destemido piloto que fizeram a diferença num momento decisivo da história mundial.

O Cessna próximo ao Kremlin – Foto: Domínio Público

A morte de Mikhail Gorbachev aos 91 anos em 30 de agosto quase passou despercebida. , Laureado Nobel da Paz em 1990, ele foi o último presidente e Secretário-Geral do Partido Comunista da extinta União Soviética, tendo sido personagem central dos eventos que levaram ao fim da primeira Guerra Fria, à queda do muro de Berlim e ao que pode ser considerado um dos episódios mais marcantes da história do Século XX.

Processos históricos são complexos e às vezes eventos aparentemente minúsculos e sem grande importância são de grande contribuição para desfechos monumentais. Se “Gorby”, como era chamado popularmente no ocidente, morreu quase esquecido, o que dizer de um piloto recém brevetado e uma ideia no mínimo imprudente na cabeça, mas que ajudou a mudar o rumo da história?

Pouso na Praça Vermelha

Estamos falando de Mathias Rurst, que aos 18 anos decolou com um Cessna 172B “Skyhawk” da cidade de Uetersen (próxima a Hamburgo) e após escapar de todas as defesas Soviéticas ao longo de sua rota, pousou suavemente em plena Praça Vermelha, diante do Kremlin. Sim, veremos a seguir como um quase adolescente em um “Cessninha” de aeroclube ajudou a mudar a história do mundo. Um mundo em que o GPS era uma exclusividade militar, não havia câmeras e smartphones em profusão, tablets ou Internet.

O jovem Rust desde sempre nutriu duas obsessões: a aviação e o temor de uma guerra nuclear. Não é de se estranhar que adolescer na Alemanha Ocidental pudesse produzir este tipo de trauma em um jovem. Aqui mesmo no Brasil o tema era presente nas conversas e a possibilidade e o temor de um conflito termonuclear aumentava consistentemente.

Em 1983 os Soviéticos haviam abatido um voo comercial, o Korean Airlines KAL-007, um 747 com 269 almas a bordo que tinha ingressado em seu espaço aéreo pela Península de Kamchatka.

O filme “O Dia Seguinte” (The Day After, 1983), que mostrava os efeitos de uma guerra nuclear pela perspectiva de personagens comuns em Kansas City, provocou um choque de realidade assustador ao ser lançado na TV americana e em cinemas de inúmeros países de ambos os blocos. A década de 1980 foi um período de tensão na relação entre as duas potências e seus aliados.

E assim, Rurst, que se declarava um pacifista, levou a termo um plano louco: tinha que fazer alguma coisa e se pudesse construir uma “ponte” entre a Alemanha e o que Reagan chamava na época de “o Império do Mal”.

Se conseguisse entregar um manifesto de vinte páginas a Mikhail Gorbachev com considerações sobre como atingir a paz nas negociações, ele provaria que o líder soviético falava sério sobre novas relações com o ocidente, criando um fato político, agravado pelo fato de atravessar a cortina de ferro num inocente Cessna sem ser abatido.

O avião está em um museu de Berlim – Foto Andrey Belenko via Wikimedia Commons

O plano de voo

E assim, o jovem “manicaca” elaborou seu “plano de voo” e começou por reservar o avião no aeroclube por três semanas de navegação e trocou os assentos do Cessna por tanques reserva que aumentaram o alcance original de 175 para 750 milhas náuticas – ou cerca de 1.400 km.

Como não perguntaram o que ele ia fazer, ele não falou e juntou um saco de dormir, cartas de navegação, óleo, um colete salva-vidas e um capacete de motociclista. Com este “arsenal”, ele decolou o Skyhawk rumo a Reykjavík, sobrevoando o Báltico por cinco horas e chegando a esta cidade no dia 15.

Lá ele esteve diante da Hofdi House, o elegante prédio onde Reagan e Gorbachev haviam se encontrado e fracassado nas negociações de um acordo para retirada de mísseis da Europa em 1986. Ele recordou posteriormente que isso lhe deu uma espécie de vigor e motivação para seguir adiante.

Em 22 de maio, ele elevou as rodas do Cessna novamente e direcionou-o para Bergen, Noruega, depois para Helsinki, Finlândia. Neste ponto ele abasteceu completamente os tanques reserva e partiu no dia 28 para Estocolmo, onde a ação começa de verdade: após abandonar o contato a Torre, desligou o rádio e guinou para o leste em direção a Moscou, o que provocou a suspeita de que tivesse se acidentado e até buscas por equipes de salvamento foram lançadas.

Ele não tinha um código transponder assinalado, voou baixo como os controladores haviam recomendado para evitar as camadas de estratos na rota e cruzou a fronteira da Lituânia.

Foto: Domínio Público

Entrada na União Soviética

Neste momento, o Cessna apareceu nos radares soviéticos e foi quase desprezado, exceto pelo fato de ser um alvo radar fora dos corredores que exigiam aprovação prévia e assim três unidades de mísseis entraram em alerta. Pequeno e lento, não parecia uma ameaça, embora continuasse sendo seguido pelos radares.

A certo ponto, dois caças da base de Tapa foram mandados para checar aquele alvo. O piloto soviético ao ver o Skyhawk confundiu-o com um Yak-12, um monomotor de asa alta muito usado na União Soviética.

Não foi agradável para Rurst, que viu uma sombra se transformar em um MIG-23 que se esforçava para observá-lo, totalmente flapeado, trens embaixo e com um ângulo de ataque quase levando ao estol para poder acompanhar o lento monomotor. Tomado por um piloto confuso, sem orientação ou em treinamento, não foi interceptado e continuou sua jornada solitária sem que o incidente fosse escalado na cadeia de comando soviética.

Tudo indica que desde o drama do 747 da Korean Airlines, ordens para abater aviões civis passaram a ser um grande problema para os militares soviéticos e o alerta para ameaças pouco críveis eram neutralizados.

Ao longo do caminho, todas as vezes que Rust cruzou com aeronaves ou áreas de radar em que foi notado acabou sendo classificado como amigo, confundido com aviões em treinamento ou helicópteros. Sobre Leningrado um controlador alertou sobre o avião sem transponder, mas isso era relativamente comum e assim ele passou despercebido novamente.

Chegada a Moscou

Finalmente, o Cessna Skyhawk cruzou, sem mesmo notar o “Anel de Ferro” – três círculos concêntricos de baterias de mísseis em volta de Moscou – e chegou à capital Soviética ao final de uma calma tarde. Sobrevoou a cidade até identificar o Kremlin e para chamar a atenção e diminuir o risco de “desaparecer” se pousasse dentro do centro do poder político soviético, usou uma ponte como referência e tocou suas rodas alemãs às 18h43, cinco horas e meia após deixar Helsinque, em plena Praça Vermelha.

O pouso foi feito com flaps full, motor em marcha lenta e não deixa de ser cômico que, taxiando para tentar estacionar em frente ao memorial de Lenin, o piloto ultrapassou um lento automóvel (um Volga) e percebeu a incredulidade do motorista quase paralisado e chegou a temer que o idoso condutor perdesse o controle do carro e o atingisse.

Ao desembarcar serenamente, recebido com estranheza, pedidos de fotos e autógrafos e até comida por parte dos moscovitas encantados, a KGB não conseguia confiscar todas as câmeras e até o pouso filmado por um turista inglês chegou ao ocidente.

Mathias foi preso duas horas depois da confraternização e mais tarde julgado e condenado a quatro anos de trabalhos forçados, sendo libertado em agosto de 1988. Quando retornou ao seu país, teve uma vida conturbada, tendo sido preso novamente por esfaquear uma colega enfermeira que recusou suas investidas.

Mudança de rumos

A fragilidade das defesas soviéticas deu a Gorbachev o que ele precisava: motivos para demitir a linha dura das camadas resistentes às suas reformas. O Ministro da Defesa e o Chefe das Defesas Aéreas Soviéticas foram sumariamente demitidos. Milhares de oficiais da linha dura do regime foram afastados de suas funções e “Gorby” saiu fortalecido, no maior expurgo desde 1930, com Stalin.

E nessa condição, um premier respeitado fez frente a Reagan e exatamente um ano depois assinaram um importante tratado para a retirada de mísseis de alcance intermediário na Europa.

A reputação dos militares soviéticos havia sido ferida de morte, a população russa viu no episódio que os mitos da superioridade soviética eram propaganda ou um erro. Não há como precisar o efeito geopolítico deste fato improvável conduzido por um adolescente em um avião tão frágil, mas é consenso entre a maioria dos historiadores que este acontecimento improvável precipitou uma cadeia de consequências que levaram ao êxito de Gorbachev e ao fim da Guerra Fria em 1989.

De tudo isso, é certo afirmar que o Cessna 172B D-ECJB foi mais decisivo na história da Guerra Fria que os poderosos SR-71 Blackbird, U-2, Boeing B-52 ou todo o aparato da corrida armamentista que contrapunha MIGs e caças ocidentais.

O heroico Cessninha pode ser visto no Deutches Technikmuseum em Berlim. Mathias Rurst hoje tem 54 anos, converteu-se ao hinduísmo e permanece um ativista. Ele e Gorbatchev nunca se encontraram.

Desde o pouso histórico, Mathias Rurst nunca mais pilotou um avião.

Mauricio Pontes é piloto de aviões, de automobilismo e jornalista. Atua como gestor de crises e palestrante sobre variados temas e é CEO da C5i Consultoria de Riscos e Crises (www.c5icrisis.com). Vivenciou a aviação desde os 16 anos no volovelismo, dedicou 30 anos de vida à segurança de voo, passou por empresas como TAM e ING, foi membro  fundador da Azul Linhas Aéreas e Head de Crises do Aeroporto Internacional de São Paulo.
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