Como a desistência da Boeing pode prejudicar o futuro da Embraer

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ANÁLISE
Em outubro de 2017, noticiamos em primeira mão que a Boeing iria fazer uma oferta à Embraer. Em um período de menos de três anos, vimos a proposta ser feita e desfeita, de forma vergonhosa, pela Boeing. E agora, o que podemos esperar para o futuro da empresa brasileira?

Embraer E175-E2 Boeing
Embraer E175-E2 pousa em São José dos Campos © Divulgação

O prazo para a assinatura final do contrato venceu ontem, 24 de abril, coincidindo com um dia conturbado no mercado brasileiro pelo clima político adverso. E, tragédias nacionais à parte, a aviação também está num momento complicado, enquanto passa por sua maior crise.

Desde que a pandemia foi declarada e os aviões colocados no chão no mundo todo, estava claro que o acordo da Boeing com a Embraer não seria mais o mesmo. Isso por que a crise bateu num momento em que a Boeing ainda tentava se reencontrar após um ano com o 737 MAX parado, com atrasos no desenvolvimento do 777X e muita roupa suja sendo lavada em público. Some-se a isso um projeto defeituoso do KC-46 (Boeing 767 de reabastecimento), que ganhou a licitação na USAF frente ao Airbus A330 MRTT, mas é claramente menos capaz.

Práticas espúrias vindo à tona tornaram a própria empresa uma vilã de si mesma, com sua cultura interna tóxica escancarada e executivos sendo demitidos ou pedindo as contas.

Um novo processo de governança corporativa foi estabelecido para tentar aumentar a confiança do mercado. No entanto, enquanto batalhava para superar a própria crise interna, as ações judiciais e as multas por violações de processos, uma chuva de cancelamentos devido às perspectivas negativas do mercado começou a bater na porta.

De início, a fabricante disse que não precisaria de apoio do governo americano, mas essa opinião logo mudou. Então, ainda com o resquício de soberba que lhe assola (e que precisa mudar urgentemente), a fabricante decidiu cancelar o processo de compra da Embraer sob alegação de que a brasileira “não satisfez as condições necessárias”.

Essa declaração da americana é, de fato, vergonhosa e está nítido que o problema da Boeing é falta de dinheiro. É falta de capacidade de pagamento, mais do que tudo, resultante de anos de má gestão.

Honestamente, não há como a Boeing dizer que a Embraer não satisfez as condições. Esse processo corre há anos e estava na última etapa, que era a aceitação do acordo pelo órgão anti-truste europeu. Nesse meio-tempo, Boeing e Embraer trabalharam juntas. Muitos brasileiros foram demitidos, trocados por americanos no escritório da Embraer no SP Corporate Tower, houve muitos ajustes, gasto de recursos brasileiros para, no final, a americana arrumar uma desculpa para pular fora do barco.

Pela resposta que a Embraer soltou, duas horas depois do release da Boeing, nota-se o nível do estresse. A brasileira acusa a americana de, inclusive, mentir e criar falsas alegações para encerrar as negociações. Enfim, para quem acompanha a aviação diariamente, isso parece claro como cristal.

Definitivamente, a brasileira deverá entrar com um processo para obter uma compensação por tudo isso e cabe a nosso governo ajudá-la nisso, dada a importância do setor.

Airbus pela frente

JetBlue era uma das maiores clientes da Embraer, mas trocou de lado

Agora, a Embraer se vê em uma situação muito desfavorável. Sem a parceria com a Boeing, terá que lutar sozinha contra o CSeries que, desde que virou A220 na Airbus, abocanhou 305 encomendas, contra apenas 53 da Embraer com os E2.

O número assusta. A Airbus conseguiu 5 vezes mais encomendas do que a Embraer, principalmente de antigos clientes da brasileira, como a JetBlue e a Air France.

O motivo do “boom” do A220 é simples: o mercado confia mais na fabricante europeia do que na canadense. Além disso, a Airbus é conhecida por oferecer generosos descontos, além de ter um enorme poder de barganha quando as companhias aéreas também pretendem adquirir jatos maiores.

A Embraer não consegue oferecer isso agora, já que não poderá mais oferecer seus aviões junto aos da Boeing, além de não ter mais o apoio dos times comercial e de marketing da fabricante americana.

A título de comparação, a carteira da Embraer tem cerca de 300 aviões encomendados, enquanto Boeing e Airbus têm cerca de 4.500 a 5.000 cada.

A busca por soluções

Embraer E175 da United Express

Se existe uma boa notícia para a Embraer é a multa de $75 milhões de dólares que ela irá receber pela desistência da Boeing pelo contrato. Mas isso soa até como piada perto dos US$ 4,2 bilhões do acordo.

Outro ponto que a Embraer precisa destravar é a questão da Scope Clause nos EUA. Como já falamos diversas vezes aqui, é uma cláusula de sindicato que limita o peso dos aviões das companhias aéreas regionais (tercerizadas), impedindo o novo E175-E2 de ser vendido lá.

Diferente dos E170 / E175-E1, que tiveram 825 unidades vendidas nos EUA, o modelo E175-E2 é mais pesado do que o limite máximo imposto pela regra da Scope Clause e não pode ser encomendado pelas empresas americanas, embora ele tenha características semelhantes ao seu antecessor.

Existe um certa força no mercado que pede a mudança da cláusula desde que seja pelos assentos, já que os E-Jets são os preferidos dos pilotos por serem maiores e mais completos que os CRJ-900, além de terem maior capacidade de carga.

Porém, lá se vão anos de discussão e não está nada fácil mudar esta cláusula. Quando a Azul fez a apresentação do seu primeiro E195-E2, compartilhei algumas fotos com meus colegas veteranos da Western Michigan University (WMU), terceira maior formadora de pilotos nos EUA.

“Eu sei que existe uma empolgação com novos jatos, mas sinto vergonha que alguém da WMU apoie a Embraer para mudar as cláusulas. Se estes jatos (E2) forem para as regionais, irão colocar um limite nas suas carreiras. Quando a United Express permitiu jatos com mais de 70 assentos (76 no caso) tiveram 1.437 pilotos da linha principal da United que foram embora”, me disse uma antiga colega de classe, que hoje está na aérea após sair da USAF, onde pilotava o C-5 Galaxy.

Esse medo da terceirização aumentar é o que reforça a posição do sindicato, mas a Embraer pode ter um argumento contra: a maior crise da aviação mundial está em curso.

Essa crise poderá justificar uma pressão das aéreas regionais rumo a uma flexibilização na convenção coletiva (inclusive muitas expiram este ano e devem ser renovadas), visando reduzir custos. A famosa argumentação de que “temos que reduzir custos para manter empregos” pode ser útil. Pegar um avião mais econômico para diminuir os gastos com combustíveis em meio à recuperação da crise pode servir de incentivo.

A encomenda da SkyWest por 100 jatos E175-E2 foi cancelada porque a cláusula não foi mudada, e o contrato da encomenda previa um cancelamento sem multa neste caso.

O Futuro

Toda esta situação de incerteza, seja pela pandemia, pela Scope Clause, pela situação do Brasil ou pelo futuro da aviação em si, traz uma onda de negatividade para a Embraer.

Alguns leitores nos questionaram sobre uma possível compra pela China, mais especificamente pela COMAC. Isso é especulação por hora. Achamos improvável. Uma negociação com a China dificilmente seria aprovada pelos acionistas ou pelo próprio governo brasileiro.

O temor estaria em torno da aceitação do mercado e nos benefícios que uma parceria dessa poderia atrair além do dinheiro. Hoje, nenhuma empresa aérea decente compra aviões chineses, já que seu histórico é ruim, além de não ter nenhuma comunalidade com os aviões da Embraer, Boeing ou Airbus, do ponto de vista do operador.

Fora isso, resta à Embraer reforçar seu time de vendas e ir à luta. Se a empresa continuar no ritmo que estava antes da proposta de compra pela Boeing, estaria limitada a algumas vendas do E2, alguns Super Tucanos para aliados dos EUA e, talvez, algumas vendas do KC-390.

Porém, o medo maior é que a Airbus (agora a médio ou longo prazo) utilize os recursos técnicos da Bombardier para entrar com um novo avião que atenda a Scope Clause americana.

Caso isso se concretize, será o fim certeiro da liderança da Embraer no mercado de até 140 assentos. Até lá, existe “muita água para passar debaixo da ponte”, e não se pode descartar uma futura nova oferta da Boeing.

Como empresa de ponta, a Embraer saberá para onde ir.

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Carlos Martins
Carlos Martins
Fascinado por aviões desde 1999, se formou em Aeronáutica estudando na Cal State Long Beach e Western Michigan University. #GoBroncos #GoBeach #2A

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