A difícil busca pelas peças do A380 caídas na gélida Groenlândia

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O Bureau d’Enquêtes et d’Analyses (BEA), órgão de investigação de acidentes aéreos francês, divulgou na última quinta-feira, 4 de junho, detalhes sobre como foi o trabalho para recuperar as partes do motor n° 4 do A380 da Air France, que se desprenderam após um sério incidente em voo sobre a Groenlândia.

Motor GP7200 A380 Air France
Motor do A380 da Air France na falha de 2017

No dia 30 de setembro de 2017, o Airbus A380 da Air France de registro francês F-HPJE fazia o voo de número AF66, entre Paris e Los Angeles, com 497 passageiros e 24 tripulantes a bordo, quando, ao sobrevoar o território gelado da Groenlândia, perdeu partes de seu motor número 4 enquanto subia para o FL370 (37.000 pés – 11.278 metros).

Desprenderam-se, do restante do motor Engine Alliance GP7000, o fan (primeiro conjunto rotativo frontal do motor), a tomada de ar (inlet) e a carcaça do fan (case). A aeronave pousou em Goose Bay, no Canadá, sem maiores dificuldades e não houve feridos a bordo.

A partir daquele momento, teve início a investigação para elucidar como tais partes podem ter se soltado do motor do Superjumbo em pleno voo. Para isso, era essencial para a investigação a recuperação dos componentes perdidos, o que tornaria possível resolver o mistério.

O desafio se tornava maior por conta das características do local sobrevoado pela aeronave no momento do grave incidente: a gélida e inóspita Groenlândia. Considerada a maior ilha do mundo, a Groenlândia é uma região autônoma dinamarquesa localizada entre os oceanos Atlântico e Ártico, de clima polar, e em grande parte coberta por gelo.

Assim, encontrar as partes do motor perdidas impunha um severo desafio aos investigadores.

As fases de busca

Em seu reporte técnico, o BEA revela que dividiu o procedimento das buscas em três fases: I, II e III.

A Fase I foi caracterizada por uma busca visual, de 12 dias, pelas partes perdidas na superfície do gelo, iniciada logo após a ocorrência do incidente.

A Fase II, que acabou por apresentar resultados inconclusivos, foi marcada por uma busca aérea realizada por uma aeronave do ONERA, laboratório francês de pesquisa aeroespacial, que utilizou radares de abertura sintética (SAR), a fim de detectar as peças abaixo da camada de gelo.

Em solo, uma equipe liderada pelo Instituto de Pesquisa Geológica da Dinamarca e da Groenlândia (GEUS), empregando radares de penetração no solo (GPR), realizava buscas de acordo com as informações passadas pela equipe aérea do ONERA.

Apesar do grande trabalho e esforço, no final de junho de 2018 ainda não haviam sido detectados fragmentos do hub perdido pelo motor. A Fase II foi encerrada no final de 2018.

Com novos objetivos estabelecidos pelo ONERA, e a disponibilidade de um novo sensor eletromagnético, o BEA decidiu iniciar, em maio de 2019, a Fase III das buscas. No entanto, devido às condições climáticas complicadas, a operação teve seu início postergado para junho.

Finalmente, em 30 de junho de 2019, foram encontrados o fan hub, que ainda estava com as palhetas (blades) presas a ele. Os componentes foram posteriormente encaminhados para um laboratório para exame metalúrgico.

A Fase III

A Fase III foi subdividida pelo BEA, nas seguintes tarefas:

  • 1 – Definição da área de busca para a Fase III: simulação de falha do motor, atualizações de computação balística e análise de dados de imagens de radar;
  • 2 – Avaliação de novos recursos de detecção: RECCO®, cães farejadores e sensores eletromagnéticos (EM);
  • 3 – Campanha de campo da Fase III e extração de peças.

1 – Definição da área de busca

O primeiro desafio foi diminuir a área potencial em que fragmentos do motor GP7000 poderiam ter caído.

O BEA observa que uma simulação foi usada para estimar tamanho, massa, velocidade e ângulo de ejeção de cada fragmento do hub, para ajudar a refinar o cálculo balístico e a área de pesquisa na camada de gelo da Groenlândia. A Engine Alliance usou o software de análise de elementos finitos LS-Dyna para a simulação da falha do hub do fan.

BEA simulação ruptura fan hub motor A380 Air France



Simulação da ruptura do hub, consistente com os danos observados no motor. Fonte: BEA

A área foi reduzida ainda mais, definindo a posição do A380 da Air France no momento do incidente. Investigadores franceses, juntamente com a Airbus, decidiram usar a posição indicada pelo Flight Management System (FMS) da aeronave, uma combinação de dados de GPS e Sistema de Referência Inercial (IRS).

O próximo passo foi determinar a altitude e realizar cálculos balísticos. Os cálculos foram feitos pelo BEA, pelo National Transportation Safety Board (NTSB) dos Estados Unidos e pela Airbus. Uma análise mais aprofundada das imagens de dados de radar foi feita para detectar de forma confiável os fragmentos sendo pesquisados, observou o relatório do BEA.

BEA área de busca fragmento motor A380 Air France
Áreas finais de busca, definidas após os cálculos de balística computacional. Fonte: BEA

Foi concluído que os radares de penetração no solo (GPR) eram uma opção para uma pesquisa de área ampla, assim os investigadores decidiram explorar várias opções recém-disponíveis se uma nova operação de pesquisa fosse lançada.

2 – Avaliação de novos recursos de detecção

Foram considerados, para as buscas da Fase III, o sistema RECCO, um dispositivo amadurecido e pronto para uso que é usado para procedimentos de busca e salvamento em avalanches, além de cães farejadores e sensores eletromagnéticos (EM).

No final, prevaleceram os sensores eletromagnéticos. No entanto, eles tiveram que ser adaptados a um sistema chamado SnowTEM, pois a profundidade em que a peça desaparecida estava localizada e suas características não podiam ser trabalhadas com sensores EM tradicionais e disponíveis.

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Sensor SnowTEM sendo desenterrado após tempestade de neve. Fonte: BEA

Somente então o BEA considerou aceitável lançar uma nova campanha de pesquisa na Groenlândia na primavera de 2019, pois havia a crença de que o SnowTEM detectaria a peça que faltava até uma distância de cinco a seis metros de profundidade.

Os investigadores calcularam que as peças estavam enterradas sob quatro metros de neve, portanto, havia uma grande possibilidade de encontrar os fragmentos do motor para finalizar o relatório do incidente do voo AF66.

3 – Campanha de campo

Assim, um acampamento base foi montado em Narsarsuaq, na Groenlândia. Foram necessários 6.400 kg de equipamentos para a operação, incluindo um contêiner enviado de Copenhague, na Dinamarca, a 2.932 quilômetros de distância.

Foram identificados três locais-alvo: alvo 1, alvo 2a e alvo 2b.

Dentre esses locais, em 20 de maio, a equipe de campo concluiu que a possibilidade de as peças do motor estarem no alvo 2a era altamente improvável. Os mesmos resultados foram concluídos para o alvo 2b, em 23 de maio de 2019.

No mesmo dia em que o alvo 2b foi descartado, o alvo 1 forneceu um sinal claro e inequívoco, cinco minutos após o início da pesquisa usando o SnowTEM.

Neve enterrando equipamentos durante um episódio de vento forte. Imagem: BEA

Mas a extração das peças teve que ser adiada, porque o equipamento certo não estava disponível no momento, e os membros da equipe tinham outras obrigações no momento. A decisão tomada foi de que as peças seriam desenterradas no final de junho de 2019.

Chegado a hora da extração, o primeiro metro de neve foi escavado à mão e com motosserras. O segundo e o terceiro metro e meio de neve seriam removidos da mesma maneira, mas uma rampa seria usada para remover o excesso de neve e gelo. Os poucos centímetros finais seriam derretidos usando um aquecedor.

Na manhã de 28 de junho de 2019, após seis horas de trabalho manual, uma pá entrou duas vezes em contato com uma peça metálica. Para evitar danos às palhetas (blades) do fan, o aquecedor foi empregado para remover o restante do gelo sobre a peça.

BEA duto ar quente peça motor A380 Air France
Duto de ar quente sendo usado sobre a peça. Imagem: BEA

Foi confirmado na época que essa peça era um fragmento do hub com as palhetas presas. A peça foi levantada do local onde se encontrava através de uma talha, construída à mão no local. Foi então protegida e levada até a superfície através da rampa.

Essa fase de extração usou socorristas de montanha para desenterrar com segurança a peça que se encontrava a 3,3 metros abaixo da superfície, e a um metro de uma fenda.

Durante o período de extração, o grupo de campo trabalhou sob temperaturas que variavam de -15°C a 5°C.

O fragmento do hub do fan foi transportado para Narsarsuaq de helicóptero e, depois, para as instalações da Pratt & Whitney em East Hartford, EUA, para um exame detalhado supervisionado pelo BEA. Encontrar este fragmento foi essencial para determinar a causa raiz da falha do componente.

No total, contabilizando-se as três fases da operação, foram 21 meses de trabalho para resgatar a peça final. Segundo o BEA, o relatório da investigação será disponibilizado ao público em sua página da internet em meados de 2020. Entretanto, resultados preliminares já têm sido apresentados, conforme apresentado nas matérias abaixo.

Informações pelo BEA

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