Inspirado por filme, falso sequestrador de avião enganou a empresa aérea e a polícia

Boeing 707 da Qantas, após retornar ao aeroporto: 128 pessoas a bordo durante falso sequestro. IMAGEM: The Age

Já é lugar-comum dizer que a vida, muitas vezes, supera a ficção na capacidade de surpreender. E o espetacular caso do falso sequestro do voo 755 da Qantas comprova que a realidade também sabe ser melhor do que muito roteirista de cinema.

Em 26 de maio de 1971, um homem que se identificou como Mr. Brown telefonou para a sede administrativa da companhia aérea Qantas, em Sydney, na Austrália, com uma declaração perturbadora. Uma bomba estava a bordo do voo 755 que acabara de decolar daquela mesma cidade para Hong Kong, na China.

A voz ao telefone exigia o pagamento de US$ 500 mil antes do término do voo ou ele explodiria a aeronave. Os atendentes informaram à polícia, que desconfiou da ameaça. Em outro telefonema, o suposto terrorista se antecipou e ofereceu uma prova sobre a seriedade de duas intenções: ele havia colocado uma réplica da bomba no armário número 84 do guarda-volumes do Aeroporto Internacional Kingsford-Smit de Sydney.

Não era mentira. No local indicado, os policiais encontraram um explosivo verdadeiro, preparado com um composto a base de nitroglicerina e com um detonador acionado por um altímetro. Colado ao artefato, um bilhete informava que se o avião baixasse a altitude para menos de 6 mil metros, a bomba iria explodir. Ou seja, a aeronave não poderia pousar sem que a bomba fosse desarmada ou todas as 128 pessoas a bordo do Boeing 707 morreriam.

A bomba foi plantada no armário de um aeroporto como parte da fraude da bomba da Qantas em 1971.
Réplica da bomba encontrada no guarda-volumes do Aeroporto de Sydney. IMAGEM: ABC News

Contra o tempo

O tempo estava correndo. O controle de tráfego aéreo australiano ordenou que o piloto retornasse com o avião e voasse em círculos sobre o aeroporto de Sydney. Nesse momento, já haviam passado mais de três horas desde a decolagem e o Boeing tinha pouco mais de seis horas de combustível.

Enquanto isso, negociadores especializados conversavam com o sequestrador. Ao mesmo tempo, técnicos do esquadrão antibombas retiraram o explosivo-réplica do aeroporto. Uma lâmpada foi usada para simular a detonação. Ela foi colocada em um Boeing 707, que decolou para, logo em seguida e, em seguida, descer novamente. Quando a aeronave estava a pouco mais de 1.500 metros do solo, a lâmpada se acendeu. A ameaça parecia real.

Os 116 passageiros e a maior parte dos 12 tripulantes do voo 755 para Hong Kong não sabiam o que estava acontecendo. Eles foram informados de que voltariam para Sydney por causa de uma “falha técnica”. Apenas a cabine de comando estava a par da situação. O tempo (e o combustível) se esgotava. A única forma de deter a explosão era encontrar a bomba no avião e desativá-la manualmente. Mas para isso, precisavam da ajuda de Mr. Brown.  

Exigências aceitas

Em acordo, as autoridades policiais e o alto comando da Qantas resolveram atender às exigências e pagar o resgate. Por volta das 17h30, com menos de 60 minutos de combustóvel, o vice-gerente geral da Qantas, Phillip Howson, atendeu a ligação e informou a rendição. Demorou menos de 10 minutos para o Mr. Brown detalhar os termos e condições da entrega do pagamento.

Uma kombi amarela pararia em frente à sede da Qantas às 17:45. O motorista se identificaria sacudindo as chaves pela janela. O dinheiro deveria estar em duas malas. A informação sobre a desativação da bomba só seria passada depois que o veículo partisse e não fosse seguido. RJ Ritchie, o gerente-geral da Qantas em pessoa, levou as malas e as colocou no veículo que partiu em alta velocidade.

Authorities recreate the 1971 Qantas bomb hoax with two suitcases full of money.
RJ Ritchie, gerente-geral da Qantas, durante reconstituição do pagamento do resgate

Às 18h20, as autoridades receberam a ligação final de Mr. Brown. “Vocês podem relaxar agora. Não há bomba nenhuma a bordo do avião. Você pode pousá-lo com segurança”. Ainda incrédulos, mas sem alternativa frente a iminente pane seca da aeronave, os procedimentos de pouso iniciados.

Espaço aéreo fechado, dezenas de carros do corpo de bombeiros, 12 ambulâncias, equipes de resgate e salvamento a postos. Oito navios da Marinha foram direcionados para a baía de Sydiney, mas o voo 755 pousou normalmente, às 18h45, para alívio de todos. O Boeing foi rigorosamente inspecionado e nenhuma bomba encontrada. Haviam sido enganados.

Um recorte de jornal com a manchete Trote de bomba custa à Qantas US $ 550.000.
“Falsa bomba custa $550 mil para Qantas”, diz jornal da época. IMAGEM: ABC News

Mr.Brown

O caso atraiu a atenção generalizada da imprensa e da população de todo o país. A pressão para encontrar Mr. Brown era imensa. Mas não havia nem sinal da Kombi amarela e da identidade do criminoso. Ritchie informou que o motorista da Kombi estava sozinho, tinha cabelos longos (provavelmente uma peruca), óculos grossos e uma barba falsa. Aparentava idade entre 30 e 40 anos.

A polícia ofereceu uma recompensa de AU$50 mil por qualquer informação sobre os autores do crime. Os detetives trabalharam ao lado da britânica Scotland Yard, do FBI e da Interpol em análise da grande lista de suspeitos. Especialistas foram chamados para ouvir as gravações da voz de Brown e localizar pistas, enquanto panfletos com retrato falado do motorista e campanhas no rádio e na televisão eram divulgadas ao público.

Meses se passaram sem qualquer pista, até que um frentista informou à polícia sobre um homem que gastava muito dinheiro sem nunca trabalhar. O sujeito era Raymond James Poynting, um ex-barman desempregado que passou a colecionar carros de luxo. Ele foi colocado em observação. O comportamento altamente suspeito continuou até que ele foi levado para averiguação em 4 de agosto de 1971. Naquele mesmo dia, Poynting confessou participação do falso sequestro do voo 755.

Poynting, contudo, negou ser Mr. Brown. Esse, na verdade era Peter Maccari, seu amigo próximo e imigrante irlandês. Maccari foi identificado como o autor do roubo da Kombi usada do dia do crime e confessou ser Mr. Brown.

Depois de se declarar culpado, Poynting foi condenado a cinco anos de prisão, enquanto Maccari recebeu a pena máxima de 15 anos. Metade do dinheiro do resgate foi recuperado, escondido na parede atrás de uma lareira.

A mugshot of Peter Macari.
Peter Maccari, (Mr. Brown), em foto da época. IMAGEM ABC News.

Maccari foi deportado para Inglaterra em 1980 (em um voo da Qantas). Após ser libertado, em 1986, Maccari se mudou para uma cidade do interior do país. Chegou a ser investigado no caso do desaparecimento de um adolescente das redondezas, mas o caso não foi concluído. Tem hoje 74 anos e vive discretamente.

De filme para filme

Chamou a atenção da polícia a semelhança do caso com o enredo do filme estadunidense 100.000 Dólares ou a Morte (The Doomsday Flight) dirigido por William Graham em 1966. Na obra, um sequestrador misterioso chantageia a policia por telefone depois de esconder uma bomba em um avião. O explosivo era acionado por altímetro e a localização a bordo só era conhecida pelo bandido. Se avião baixasse, explodiria, o pagamento deveria ser feito com a aeronave ainda no ar. Mais tarde, Maccari admitiria ter assistido o filme.

Em 1986, o caso serviu de inspiração para o filme “Call Me Mr. Brown”, do australiano Scott Hicks. A companhia aérea Qantas tentou na justiça proibir a exibição do filme, sem sucesso. Contudo, cinemas e redes de televisão se recusaram a exibi-lo, com receio de que servisse de inspiração para outros criminosos, assim como o filme de 20 anos antes. A obra foi lançada diretamente em vídeo em 1990, sem fazer muito sucesso.

Com informações de The Age, ABC Australia, 9News Australia, The Independent.

The Doomsday Flight (TV Movie 1966) - IMDb
Filme de 1966 serviu de inspiração para o criminoso. IMAGEM: IMDB
Fabio Farias
Fabio Farias
Jornalista e curioso por natureza. Passou um terço da vida entre aeroportos e aviões. Segue a aviação e é seguido por ela.

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