No final do ano de 2018, uma aeronave da Guiné Equatorial foi recebida pela Polícia Federal no aeroporto de Viracopos, em Campinas. O que parecia ser apenas um voo de rotina, logo se revelou um imbróglio envolvendo uma mala de dinheiro e relógios, que totalizavam mais de US$ 15 milhões em bens.
O motivo do voo e o porquê de tais itens estarem a bordo são um mistério. Da mesma forma, poucos sabem que mais de duas dezenas de voos do governo da Guiné Equatorial já haviam pousado no Brasil entre 2012 e 2018 e que pouco histórico há sobre eles, inclusive as bases da ANAC deixaram de mostrar essas operações.
Nesta publicação, o AEROIN explora os fatos envolvendo a polêmica operação da empresa aérea estatal guinéu-equatoriana, Ceiba Intercontinental, ao Brasil.
Entenda a apreensão
O fato que “mudou a forma” como a Ceiba passou a ser vista por quem acompanha a aviação foi a apreensão ocorrida na tarde de 14 de setembro de 2018, menos de um mês antes do primeiro turno das eleições presidenciais e de outros cargos executivos e legislativos, daquele ano.
Naquele dia, uma operação conjunta entre o aeroporto de Viracopos e a Polícia Federal encontrou as malas com dinheiro e relógios junto da comitiva do vice-presidente da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Mang, que também é filho do presidente do país, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo. Mais dez pessoas estavam a bordo do enorme avião, que não veio ao Brasil em missão oficial, já que o voo não foi formalmente solicitado ao Itamaraty, mas sim foi feito como um fretamento privado tradicional.
Como tratava-se de um voo comercial, toda a bagagem é verificada e foi nesse processo que aproximadamente US$ 1,5 milhão e o equivalente a US$ 13 mil em reais, junto com relógios de luxo estimados em cerca de US$ 15 milhões, foram achados. Lembrando que, nas missões oficiais, a bagagem diplomática com documentos do país de origem não é inspecionada.
Depois disso, os bens foram apreendidos e a comitiva foi liberada. Curiosamente, o vice-presidente, que havia alegado que veio ao Brasil para tratamento de saúde, retornou junto com o grupo. Uma investigação foi iniciada sob sigilo diplomático e nunca mais se falou sobre o assunto.
Amizades
De toda essa cena, as perguntas que ficaram foram: O que fazia esse avião no Brasil? Por que tinha tais itens valiosos a bordo? E qual era e intenção real da viagem? Por que chegou ao Brasil às vésperas da eleição de 2018? E por que houve mais de 20 viagens antes disso? Todas essas respostas ainda estão em aberto.
À época, surgiu um rumor de que teria relação com algum empréstimo do BNDES, seguido de um perdão de dívidas durante os governos do PT, e que aquela seria uma “devolução” do dinheiro. No entanto, isso foi investigado pela Agência Lupa e desmentido pelo próprio BNDES, conforme nota abaixo:
“O governo da Guiné Equatorial não é nem foi cliente do BNDES. O país não é nem foi destino de financiamento do banco à exportação de bens e serviços brasileiros de engenharia. Não há obras na nação africana realizadas por empresas brasileiras com financiamento do BNDES”, diz a nota, publicada no dia 17 de setembro. “O Banco, portanto, não perdoou nenhuma dívida da Guiné Equatorial, uma vez que não há operações entre o BNDES e o governo do país”.
Mas isso não responde às perguntas. À época, foi noticiado em toda a imprensa sobre relação estranha entre empreiteiras brasileiras e o governo guinéu-equatoriano, numa troca de favores que envolveu, obras na Guiné e “patrocínios” em reciprocidade. O caso foi trazido à luz pela operação Lava-Jato e pauta de muitas matérias daquela época, que podem ser ainda hoje lidas.
Ainda assim, isso não conclui a análise. Além disso, não houve apenas uma viagem, mas várias, entre Guiné Equatorial e Brasil, algumas delas bastante fora do comum e os dados sumiram da base da ANAC há anos. Entenda mais abaixo.
Voos sumiram da ANAC antes de 2018
A aeronave da comitiva interceptada em Viracopos em setembro de 2018 era o Boeing 777-200LR de marcas P4-SKN (msn 60116, anteriormente 3C-MAB). O avião foi da companhia estatal, Ceiba Intercontinental, mas, desde 2017, está registrada em nome do governo da Guiné Equatorial. Esse avião, em específico, veio ao Brasil apenas nesta ocasião.
No entanto, antes dele, os voos ao Brasil eram feitos por outro Boeing 777-200LR, de matrícula CS-TQX (msn 40668), arrendado da empresa aérea portuguesa White Airways, mas operando em nome do Governo da Guiné Equatorial através da Ceiba (veja certificado abaixo, obtido junto a uma fonte em Portugal).
O CS-TQX foi um assíduo frequentador do Aeroporto de Guarulhos. A aeronave foi fabricada em 2011 e no ano seguinte já começou a dar as caras em São Paulo. As visitas eram tão frequentes que deixaram de ser uma aeronave rara para ser mais um mero Boeing no aeroporto.
A motivação das visitas sempre foi misteriosa: apesar de serem voos comerciais, não era uma rota regular, não havia venda de passagens, muitas vezes o avião estacionava na Base Aérea, poucos passageiros vinham à bordo. Falava-se que os voos transportavam funcionários de empreiteiras em obras na Guiné Equatorial, mas isso jamais pôde ser confirmado.
De fato, os voos do CS-TQX não eram diplomáticos, já que apareciam no HOTRAN (Horário de Transporte Aéreo da ANAC, e até por isso facilitava o grande número de fotos por entusiastas de aviação. Assim sendo, todos sabiam quando a aeronave viria.
Fato muito curioso é que, ao consultar o histórico VRA do Hotran (Siros), que mostraria os voos desde o ano 2000 até 2022, por algum motivo desconhecido estes voos sumiram dali. Isso já havia sido identificado pelo AEROIN em duas ocasiões anteriores, sendo a última em 2018. Além disso, os voos não constam das estatísticas de passageiros, cujo reporte é mandatório por todas as empresas que operam voos comerciais no Brasil, sejam eles regulares ou fretados.
Lembrando que o acesso ao site da ANAC é público conforme determina a Lei. A consulta tanto pelo código da Ceiba, quanto pelo da portuguesa White, a real dona do avião, ou pela rota, não retorna nada. Abaixo, uma captura de tela mostra uma pesquisa feita hoje para voos entre Malabo (FGBT) e Guarulhos (SBGR), que era a rota que a aeronave fazia. Note que a consulta não retorna nada, e ainda volta uma mensagem dizendo que a pesquisa se restringe a 2014, quando na verdade o período todo de 2000 a 2022 foi selecionado (a mesma pesquisa para outros voos de outras empresas retornam resultados, normalmente).
Quantos voos foram feitos
Antes de entrar na análise, vale ressaltar que voos oficiais com aviões da Ceiba foram realizados para o Brasil, principalmente para participar de eventos e cúpulas. Não são esses estão sendo analisados, mas os voos comerciais de passageiros.
Para os voos comerciais, como as informações da ANAC não estão disponíveis, o AEROIN recorreu a fotos e vídeos de entusiastas, publicados na internet, para fazer um levantamento do número de voos. Foram usadas as bases dos repositórios do Jetphotos, Airliners, Flickr, Youtube (clique nos links para ver as fotos do avião da Ceiba no Brasil).
Apenas o Boeing 777-200LR CS-TQX foi pesquisado, ou seja, os voos com outro Boeing 777-200LR e com o Boeing 767-300 não constam da análise. A quantidade de voos verificada por fotos e vídeos está no gráfico abaixo. O número de voos, no entanto, foi maior do que esse, já que nem todos foram fotografados e publicados.
Abaixo, um vídeo mostra o CS-TQX estacionado na Base Aérea de São Paulo em dezembro de 2012.
O caso do voo sem autorização
De todos os voos, um dos mais curiosos aconteceu no dia 18 de fevereiro de 2015, e que resultou num auto de infração da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), depois que a aeronave CS-TQX fez um voo ao Brasil sem autorização.
Na verdade, tratou-se de um mal entendido, onde o voo deveria ocorrer no dia 16 e fevereiro, mas acabou decolando dois dias depois. Apesar de ser um caso pontual, ele é muito importante, pois comprova que os voos da Ceiba eram voos comerciais de fato, e que não existe justificativa para seu desaparecimento da base de dados da ANAC.
Lembrando que, se fossem voos diplomáticos não haveria a multa. Veja abaixo a evidência do processo com o trecho que fala dos voos não autorizados em destaque.
Ditadura da Guiné
O Observatório dos Direitos Humanos (Human Rights Watch ou HRW) classifica o governo da Guiné Equatorial como uma ditadura. Abaixo, a forma como o HRW classifica o país.
“A corrupção, a pobreza e a repressão continuam a assolar a Guiné Equatorial sob o presidente Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, que está no poder desde 1979. Vastas receitas do petróleo financiam estilos de vida luxuosos para a pequena elite em torno do presidente, enquanto uma grande parte da população continua vivendo na pobreza. A má gestão de fundos públicos e alegações credíveis de corrupção de alto nível persistem, assim como outros abusos graves, incluindo tortura, detenção arbitrária e julgamentos injustos. O filho mais velho de Obiang e possível sucessor, Teodorin Nguema, foi condenado na França por peculato e acusações de lavagem de dinheiro. Em dois casos separados, os Estados Unidos e a Suíça concordaram em fazer um acordo com Teodorin, resultando no confisco de bens que seriam usados para beneficiar o povo da Guiné Equatorial”.
O mesmo diz o Departamento de Estado dos EUA em um relatório disponível na internet.