Não há mulheres negras pilotando avião no Brasil, aponta pesquisa da UFSCar e Quilombo Aéreo

Imagem: Divulgação / UFSCar

Mulheres negras enfrentam barreiras para entrar no mercado de trabalho da aviação civil brasileira, assim como para permanecer atuando no setor. É o que apontam pesquisadoras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Quilombo Aéreo, por meio de estudos científicos.

De acordo com o levantamento mais recente realizado pela Organização Quilombo Aéreo, em todo o Brasil, não há mulheres negras trabalhando como pilotos em companhias aéreas nacionais.

Além disso, em 2022, havia 3.283 mulheres formadas pilotos, sendo que atuantes em companhias aéreas eram apenas 992, representando 2,3% dos trabalhadores nessa função. Ou seja, mais de 97% das vagas são ocupadas por homens, sendo que apenas 2% são negros, segundo as estimativas.

Quanto aos comissários de bordo, apenas cerca de 5% dos profissionais atuantes são pessoas negras e cerca de 66% são mulheres.

O Grupo de Pesquisa Gênero, Raça e Interseccionalidades no Turismo (GRITus), que é coordenado pela UFSCar em conjunto com a Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em parceria com a Organização Quilombo Aéreo, realizou entrevistas com trabalhadoras e ex-trabalhadoras negras do setor, sendo algumas comissárias de bordo e outras pilotos formadas que não estão atuando no momento.

Foram verificadas cinco barreiras para as mulheres negras adentrarem o setor da aviação civil nacional:

– custo da formação profissional;

– falta de informações sobre a carreira;

– falta de representatividade de outras mulheres negras;

– processos seletivos desiguais; e

– não aceitação dos corpos negros.

Já para permanecer no setor, foram sete as barreiras reconhecidas:

– falta de representatividade;

– nível de cobrança;

– negação do corpo negro;

– não aceitação do cabelo crespo;

– saúde mental/laboral;

– machismo; e

– assédio.

“Não há informações sobre questões raciais dos profissionais ligados ao mercado turístico. Começamos a pesquisar sobre mulheres negras dentro da cabine de comando e só encontramos representatividade de mulheres não negras. Isso gerou um incômodo. A gente queria provar para as pessoas que a gente existe dentro desse espaço”, lembra Laiara Amorim, comissária de bordo, pesquisadora e idealizadora do Quilombo Aéreo.

O Quilombo Aéreo é um coletivo criado em 2018 por duas mulheres negras, ela e Kenia Aquino, a partir de dois projetos distintos – “Voe Como Uma Garota Negra” e “Voo Negro” -, com o objetivo de dar visibilidade aos profissionais negros da aviação civil, pesquisas acadêmicas inéditas no setor, empregabilidade e saúde mental desses tripulantes.

“O corpo negro incomoda e é rejeitado. Olhando para o cabelo da mulher negra, por exemplo, identificamos profissionais negras que foram barradas em processos seletivos porque estavam com seus cabelos naturais soltos nas entrevistas de emprego. É explícito como essas mulheres não são selecionadas, mesmo tendo um currículo bem qualificado ou até melhor que outras candidatas brancas”, afirma Natália Oliveira, professora na UFPel e coordenadora do GRITus.

Apesar de serem a maioria nos cursos superiores na área do Turismo, as mulheres ainda ocupam as posições mais precarizadas no mercado de trabalho, principalmente nas áreas de alojamento e alimentação.

“O mercado de trabalho no setor do turismo é bastante dividido em relação às ocupações, levando em conta o gênero dos profissionais. A segregação, tanto vertical como horizontal, é muito visível. Não só no Brasil, mas no mundo todo há essas características. Isso acaba violentando as mulheres negras diariamente. Acompanhamos o processo seletivo de uma das entrevistadas que participou da nossa pesquisa, por exemplo. Ela conseguiu uma vaga como comissária, apesar de estar capacitada para atuar como piloto. A empresa alegou que ela não estava preparada, mas contratou um homem que tinha as mesmas especificidades que ela no currículo”, exemplifica Laiara Amorim.

Outro fator grave identificado na pesquisa desenvolvida foi o assédio, não só sexual, mas também moral e psicológico, sofrido pelas profissionais negras, sendo praticado tanto pelos companheiros de trabalho como também por clientes das companhias aéreas.

Já identificado como mais frequente entre comissárias de bordo, recepcionistas e camareiras, dentre as trabalhadoras no turismo, o assédio é ainda mais acentuado em direção a mulheres negras.

“O assédio dentro do setor do Turismo é tratado já há algum tempo, inclusive na literatura Internacional, pois esse tipo de serviço permite um contato direto da prestadora com consumidores”, explica Natalia Oliveira.

De acordo com as entrevistadas, o assédio acontece de várias formas, como, por exemplo, por meio do questionamento da mulher estar naquele lugar.

“Uma das profissionais ouviu de um piloto que ela parecia uma passista de escola de samba. Em outros casos, homens já perguntaram quanto a tripulante ganhava de salário e se ofereciam para pagar mais”, relata Gabriela Santos, uma das pesquisadoras envolvidas no estudo.

A pesquisa também detectou que as ferramentas de denúncia de assédio não têm sido eficazes, já que muitas mulheres quando fazem uma denúncia não têm nenhum tipo de retorno.

“As mulheres são silenciadas e até ameaçadas quando buscam os meios legais para contornar este problema. Ouvi entrevistadas afirmando que alguns gestores ameaçaram de demissão em casos de registro de denúncia. Em muitos casos, a vítima acaba pedindo demissão para não ter mais que viver naquele espaço”, complementa Santos.

Para as pesquisadoras, para conseguir mudar essa realidade, é preciso que mulheres negras também estejam em cargos de liderança. No setor, cargos de topo, de gerência, de maior responsabilidade são historicamente demandados aos homens brancos cis.

“A aviação está muito atrasada com relação às pautas raciais, de diversidade e gênero. É um setor que está engatinhando neste sentido, o que é muito triste porque é uma área que lida com pluralidade no dia a dia. Tem que começar a mudar de cima para baixo. A pesquisa acadêmica é uma aliada nesse processo, pois, com estudos com embasamento científico, é possível comprovar a difícil realidade destas profissionais”, defende Laiara Amorim.

Além disso, a pesquisadora também ressalta a necessidade de se dar mais atenção às questões relacionadas à saúde mental dessas profissionais. No Quilombo Aéreo, por exemplo, são ofertadas ações por um grupo terapêutico para os tripulantes negros. “Temos terapeutas negras, que conhecem essa realidade e entendem exatamente o que ocorre, para dar suporte para esses tripulantes”, completa Amorim.

O Quilombo Aéreo atua em diferentes frentes para empoderar mulheres negras da aviação civil nacional, buscando equidade racial e de gênero.

“Vamos em escolas apresentar para as crianças da periferia, principalmente as crianças negras, que existe esse espaço, que elas podem ocupar esse lugar futuramente. Além disso, estamos fundando uma escola online de aviação civil afrocentrada para atender o Brasil inteiro. Estamos em contato direto com as companhias aéreas, temos conversado com os órgãos regulamentadores e seguimos, trabalhamos unindo essas pessoas, levantando demandas e encaminhando denúncias”, explica Laiara Amorim.

De acordo com a professora Cassiana Gabrielli, docente do Departamento de Geografia, Turismo e Humanidades da UFSCar e também coordenadora do GRITus, as pesquisas sobre gênero e raça no setor aéreo devem continuar.

“No âmbito do turismo, a discussão de gênero é recente e as discussões de raça são bastante iniciais. Queremos trabalhar questões pouco discutidas no Brasil que possam promover o aprofundamento das reflexões sobre as relações sociais nos estudos do turismo”, finaliza.

Informações da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Murilo Basseto
Murilo Bassetohttp://aeroin.net
Formado em Engenharia Mecânica e com Pós-Graduação em Engenharia de Manutenção Aeronáutica, possui mais de 6 anos de experiência na área controle técnico de manutenção aeronáutica.

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