Norma da evacuação de 90 segundos de aviões precisa ser revista, afirmam especialistas

Cena da evacuação no trágico acidente com um SSJ-100 em 2019

Os padrões de certificação de aeronavegabilidade para aviões de grande porte exigem que todos os ocupantes possam evacuar a aeronave em 90 segundos, mas há várias evacuações em que esse tempo foi significativamente excedido.

Diante disso, Nicholas Butcher e John Barnett, do Grupo de Operações de Voo (FOG) da Sociedade Aeronáutica Real (RAeS) – instituição profissional multidisciplinar britânica dedicada à comunidade aeroespacial global -, revisam os requisitos da seção 25.803 dos regulamentos da Agência de Segurança da Aviação da União Europeia (EASA) e da Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos (FAA) e questionam se ainda são apropriados.

Um dos critérios mais importantes da EASA/FAA 25.803 para a simulação de evacuação é que apenas 50% das saídas de emergência estão disponíveis. Mas há muitos exemplos em que, apesar de um acidente catastrófico ter ocorrido e deixado alguns pares de saídas indisponíveis, uma boa taxa de saída foi conseguida com evacuações demorando 90 segundos (um minuto e meio) ou menos.

No entanto, em 19 de outubro de 2012, um Boeing 737-800 em Glasgow, Reino Unido, experimentou uma quantidade significativa de fumaça na cabine antes da decolagem e o comandante ordenou uma evacuação. Com 100% das saídas de emergência sendo operadas pela tripulação de cabine e passageiros, a evacuação levou quase quatro minutos (240 segundos) – uma evacuação que potencialmente poderia ter sido alcançada em cerca de 45 segundos.

Assim, os especialistas analisam as diferenças entre os testes de aeronavegabilidade e o realismo de uma evacuação de emergência operacional de verdade, e consideram quais podem ser os fatores variáveis, como a localização e a disponibilidade de saídas de emergência, procedimentos e treinamento da tripulação e a cooperação dos passageiros no acompanhamento das instruções da tripulação.

Há pouca dúvida de que a atitude dos passageiros em relação à segurança de voo mudou ao longo dos anos e que o cumprimento das instruções da tripulação em circunstâncias normais e de emergência é menor do que costumava ser.

Os critérios de certificação de 90 segundos

Para aeronaves com capacidade para mais de 44 passageiros, o regulamento 25.803 exige que todos os ocupantes possam se evacuar da aeronave nas seguintes condições:

● Apenas 50% das saídas de emergência estão ativas;

● Os participantes do teste (atuando como passageiros), bem como a tripulação aérea, não sabem quais saídas estarão ativas;

● A demonstração é realizada em condições de iluminação reduzida;

● Bagagem de cabine e cobertores são posicionados nos corredores da cabine;

● Todos os participantes do teste devem evacuar e estar no solo dentro de 90 segundos sem assistência de pessoal de segurança externo.

Este requisito é geralmente demonstrado em testes pelo fabricante da aeronave, embora a análise e os testes parciais tenham sido aceitos pelas Autoridades Nacionais de Aviação (NAA) e, em alguns casos, tenha sido dado crédito para testes anteriores em aeronaves ou variantes com tipos semelhantes de saídas e/ou configurações de saídas.

Para o teste de evacuação do A380, a Airbus avaliou o nível de agilidade dos participantes do teste (passageiros). Esta foi a primeira vez que tal avaliação foi feita antes de um teste. Embora não haja dúvida de que esta pode ser uma abordagem razoável para proteger os participantes do teste de lesões potenciais desnecessárias, não se pode dizer que reflita as operações normais da linha aérea.

Os futuros tipos e variantes de aeronaves podem ser avaliados por análise e testes parciais, em vez de testes em escala real. Obviamente, é desejável que os participantes do teste não sejam desnecessariamente colocados em ‘caminho do perigo’, mas se houver deficiências nos requisitos anteriores do 25.803, essas deficiências serão perpetuadas na certificação de aeronaves futuras.

Talvez possa ser justificado que os requisitos 25.803 são apenas um padrão de aeronavegabilidade, enquanto as evacuações reais são de responsabilidade das empresas aéreas.

Possíveis falhas no processo de validação

Os critérios de teste do regulamento 25.803 podem, por padrão, resultar em um cenário de emergência um tanto falso, por exemplo:

● Os participantes do teste sabem que uma evacuação acontecerá logo após terem embarcado na aeronave;

● Alguns participantes do teste são funcionários do fabricante e, sem dúvida, estarão bem motivados para obter um resultado de teste positivo;

● A equipe de teste da aeronave pode ser de um operador (geralmente o “cliente de lançamento”) que encomendou a aeronave e provavelmente estará igualmente bem motivado. Eles terão sido treinados especificamente em técnicas de evacuação pelo fabricante da aeronave pouco antes do teste;

● Embora a bagagem de mão e cobertores possam estar espalhados pela cabine, a bagagem é preenchida com material de baixa densidade, portanto, com o qual os participantes do teste não têm nenhuma afinidade – ao contrário do que ocorreria com sua própria bagagem de mão;

● Historicamente, a desativação das saídas de emergência era tal que sempre havia uma de duas saídas disponíveis. Nenhum teste pelo 25.803 foi identificado onde um par de saídas de emergência da mesma área foi desativado;

● Os testes do 25.803 geralmente são conduzidos de forma ordenada com os passageiros sendo cooperativos e não competitivos;

● Dado que tais testes de evacuação são realizados dentro do ambiente controlado de um edifício, não existem condições meteorológicas, como vento, chuva ou neve, que possam ter um efeito adverso nos escorregadores de evacuação.

O cenário de teste 25.803 também difere consideravelmente de uma evacuação de emergência real. Na situação real, algumas ou todas as seguintes restrições podem ser aplicadas:

● Os passageiros não estarão esperando ou preparados para tal evento;

● A tripulação pode não ter recebido seu treinamento de evacuação pouco antes de uma evacuação, podendo ter sido até um ano desde a verificação de treinamento anterior;

● A experiência de uma tripulação de cabine de linha aérea tendo que realizar uma evacuação de emergência pode ser menor do que a de uma tripulação de cabine especificamente treinada para um teste 25.803;

● Em uma evacuação real onde há um perigo percebido e ameaça à vida, os passageiros são mais propensos a competir uns com os outros para alcançar uma saída de emergência e, portanto, possivelmente interromper o fluxo da evacuação;

● Passageiros com suas bagagens de mão;

● Passageiros tirando fotos;

● O número de saídas de emergência utilizáveis ​​pode ser maior ou menor que o critério de 50% e alguns pares de saídas nem sempre estarão com uma das saídas disponíveis;

● Os dados demográficos dos passageiros em uma evacuação real serão diferentes daqueles em um teste 25.803, como crianças e bebês, idosos e pessoas com mobilidade reduzida.

Embora algumas evacuações estejam sujeitas a sérias dificuldades, como saídas ​​ou escorregadores de evacuação inutilizáveis, existem evacuações onde a maioria ou todas as saídas estavam disponíveis, mas apesar disso o critério de 90 segundos foi excedido. Pode haver uma série de razões para isso, incluindo:

● Atrasos da tripulação de voo (pilotos) ou, se necessário, da tripulação de cabine (comissários), no comando de uma evacuação de emergência;

● Falta de comunicação entre tripulação de voo, tripulação de cabine e passageiros;

● Equipamentos de comunicação quebrados, como os sistemas de chamadas e interfones;

● A tripulação não fornece comandos de evacuação eficazes;

● Passageiros que não entendem as informações de segurança que receberam;

● Passageiros que ignoram as instruções da tripulação, principalmente levando bagagem de mão com eles;

● Passageiros em pânico e incapazes de tomar as medidas apropriadas.

As estatísticas de acidentes demonstram que, em vários casos, pares de saídas de emergência não eram utilizáveis, ou os passageiros levaram bagagem com eles, ou tiraram imagens fotográficas durante a evacuação ou a tripulação não teve oportunidade de preparar especificamente os passageiros para a evacuação.

Apenas acidentes mais recentes foram avaliados para o levantamento das observações acima, indicando que os problemas ainda prevalecem nos tempos atuais da aviação.

De fato, especialmente no caso de passageiros que levam bagagem com eles em caso de emergência, eles estão se tornando mais frequentes – sem dúvida devido ao crescente valor percebido pelos passageiros no conteúdo de sua bagagem de mão.

Lesões sofridas em evacuações de emergência

Em qualquer evacuação existe a possibilidade de os ocupantes da aeronave sofrerem lesões. Isso é verdade tanto para evacuações reais quanto para testes de evacuação 25.803.

A maioria das lesões sofridas pelos ocupantes em uma evacuação são de natureza menor, como queimaduras por fricção e entorses causadas pelo uso de escorregadores de evacuação. No entanto, lesões mais graves também foram registradas, como fraturas de ossos. Em um teste de 25.803, um participante (passageiro) sofreu uma lesão que mudou sua vida.

Colocar passageiros e tripulantes em uma situação potencialmente perigosa simplesmente para fins de um teste de evacuação 25.803 é certamente questionável, especialmente quando outras opções podem estar disponíveis. As NAAs devem considerar métodos alternativos que já podem estar disponíveis, como modelagem matemática.

Modelagem matemática

Tela de um software de modelagem matemática – Imagem: RAeS

A modelagem matemática tem o potencial de substituir ou substituir parcialmente os requisitos de teste reais do 25.803. Isso pode ter as seguintes vantagens:

● Redução ou eliminação de lesões nos participantes do teste;

● Estudo dos fatores variáveis observados nas evacuações reais, como a indisponibilidade de pares de saídas de emergência, passageiros levando bagagem, ações de pessoas idosas ou com mobilidade reduzida, etc;

● Aprimoramento dos procedimentos de evacuação da tripulação de cabine, levando em consideração fatores variáveis, como disponibilidade de saídas.

Embora a modelagem matemática tenha várias vantagens potenciais, as NAAs precisariam estar convencidas de que, para cada modelo, há evidências empíricas de correlação satisfatória para cada fator testado.

Disponibilidade de saídas de emergência

Alguns operadores podem basear seus procedimentos de evacuação de emergência da tripulação de cabine em recomendações feitas pelos fabricantes de aeronaves para aeronaves específicas.

Se tais procedimentos são baseados em um par de saídas de emergência sempre disponíveis, então em evacuações reais onde este não é o caso, tais procedimentos podem ser comprometidos.

Possíveis opções futuras

As NAAs devem considerar cuidadosamente possíveis deficiências nos critérios 25.803:

– Quantos testes anteriores do 25.803 teriam cumprido com sucesso os critérios de 90 segundos se os cenários reais tivessem sido incluídos, ou seja, indisponibilidade de pares de saídas de emergência e passageiros evacuando com sua bagagem de cabine?

– Se esse teste é inerentemente falho, quais podem ser as opções possíveis para o futuro?

Uma maneira pode ser as NAAs revisarem os testes 25.803 anteriores, agora usando modelagem matemática para ver onde os problemas realmente estão e ver como os membros da tripulação podem ser melhor treinados para lidar com as situações apresentadas a eles em um acidente real, em vez de um teste em meio ambiente controlado.

Resumo

Em 2020, o Documento Especializado da RAeS intitulado “Evacuação de Emergência de Aeronaves Comerciais de Passageiros” recomendou que as NAAs considerassem a viabilidade de introduzir um requisito de certificação para haver meios de travamento remoto, pela tripulação, dos compartimentos superiores de bagagem (bins) para táxi, decolagem e pouso, bem como outras fases críticas do voo.

Dado o número de acidentes recentes em que os passageiros levaram bagagem com eles nas evacuações, talvez seja hora de as NAAs considerarem essa proposta. Felizmente, muitas evacuações recentes foram realizadas com segurança, mas em eventos mais catastróficos que exigem ações mais urgentes, podem ocorrer resultados diferentes.

O Escritório do Inspetor Geral (OIG) do Departamento de Transportes dos EUA declarou preocupações sobre a validade das suposições que orientam os padrões de evacuação da FAA e os testes e simulações da indústria para certificar novas aeronaves.

O OIG insta a FAA a revisar se os passageiros realmente podem evacuar uma aeronave lotada nos 90 segundos necessários. O OIG é de opinião que, nas evacuações de emergência, questões como comportamento e demografia dos passageiros, dimensão dos assentos, bagagem de mão e fumaça na cabine de passageiros são fatores importantes, alguns dos quais mudaram nos últimos anos e não são necessariamente refletidos nos requisitos da FAA para certificação pelo 25.803.

Alguns acidentes podem sugerir deficiências potenciais que existem nos critérios 25.803 e uma necessidade de as NAAs revisitarem os requisitos atuais que foram estabelecidos há muitos anos com poucas alterações desde então.

De particular importância é a combinação dos fatores identificados neste artigo, ou seja, pares de saídas de emergência não disponíveis, passageiros levando bagagem de cabine, falta de prontidão da tripulação e passageiros para uma evacuação, agravada por passageiros que não entendem ou ignoram as instruções de emergência da tripulação.

As NAAs precisam considerar quão “adequados ao propósito” os requisitos do 25.803 realmente são e, em particular, como o comportamento dos passageiros mudou nos anos seguintes desde que o 25.803 foi alterado pela última vez.

Recomendações

Em seu Documento Especializado intitulado “Evacuação de Emergência de Aeronaves Comerciais de Passageiros”, o FOG fez a seguinte recomendação:

“As NAAs devem avaliar o uso de modelagem matemática baseada em computador para facilitar diferentes cenários de evacuação para a certificação inicial de tipo de aeronave. Fabricantes, operadores e projetistas de cabine devem usar essa modelagem matemática no desenvolvimento de procedimentos de evacuação de tripulantes de cabine, e também usar sempre que o número de tripulantes de cabine necessário for menor do que o número envolvido na certificação inicial de tipo de aeronave ou quando houver uma mudança significativa no número de passageiros.”

O FOG também faz outras recomendações:

1- FAA, EASA e outras NAAs devem revisar os requisitos do 25.803, levando em consideração as questões abordadas neste documento e a relevância de tais critérios com a maneira como os passageiros se comportam em evacuações de emergência reais, incluindo a retirada de bagagem de cabine e o não-cumprimento das instruções da tripulação;

2- As NAAs devem revisar as evacuações que ocorrem em aeronaves nas quais o critério de 90 segundos foi significativamente excedido, a fim de determinar os fatores que podem ter atrasado a evacuação;

3- As NAAs devem investigar mais a fundo se, como e quando a modelagem matemática pode ser usada para analisar vários cenários de evacuação, como a desativação de pares de saídas e problemas de comportamento dos passageiros;

4- Além disso, as NAAs devem considerar a introdução de um requisito para que os briefings de segurança dos passageiros incluam uma instrução para que os passageiros não tirem fotos durante uma evacuação de emergência.

Texto da Sociedade Aeronáutica Real

Murilo Basseto
Murilo Bassetohttp://aeroin.net
Formado em Engenharia Mecânica e com Pós-Graduação em Engenharia de Manutenção Aeronáutica, possui mais de 6 anos de experiência na área controle técnico de manutenção aeronáutica.

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