Panorama da frota russa sancionada um ano depois da invasão da Ucrânia

O conflito Rússia/Ucrânia chocou o mundo e a indústria da aviação comercial. As sanções ocidentais e a resposta russa a elas levantaram questões importantes sobre a validade de algumas suposições que sustentam os valores de mercado avaliados das aeronaves comerciais. 

Em março de 2022, a VV Aviation delineou uma abordagem, que era usar um valor de fim de vida útil como um proxy razoavelmente consistente para o valor de mercado hipotético de uma aeronave sancionada. Passado um ano, a mesma empresa atualizou o estudo.

A VV Aviation contabiliza mais de 600 aeronaves Narrowbody e Widebody de passageiros como sujeitas a sanções ocidentais, devido à sua conexão (propriedade ou operação) por entidades russas. A frota sancionada é dividida igualmente entre Airbus e Boeing, com alguns Embraer E190 completando o total.

A maioria da frota é composta por Narrowbodies, com o Boeing 737-800 e o A320ceo mais fortemente representados. Há um número significativo de A320neos, A321neos e A350s de “nova tecnologia” da Airbus. A idade média da frota sancionada é de pouco mais de 13 anos, com os novos tipos de tecnologia tendo em média pouco menos de 3 anos.

Premissas

As sanções impuseram restrições a aeronaves conectadas a entidades e pessoas russas ou para uso dentro da Rússia.

Os Valores de Mercado normalmente assumem, entre outras considerações, um mercado aberto e irrestrito, com a aeronave em condições de navegabilidade e em condições que permitem a venda sem impedimentos.

Para contabilizar as restrições no mercado de aeronaves sancionadas, a VV Aviation usa seu “valor parcial equivalente” (assumindo a operacionalidade) no final de sua vida útil econômica como uma medida substituta. Isso efetivamente desconta até 90% do valor de mercado “normal”, dependendo do tipo e idade da aeronave. De qualquer forma, a ideia do valor de mercado sob sanções da aeronave sendo diferente de zero. 

A VV Aviation espera que haja uma resolução que leve ao fim do conflito, resultando no levantamento das sanções. No entanto, acredita que um “retorno” às condições de mercado pré-sancionadas para aeronaves atualmente sancionadas não é realista. De fato, é bem possível que a desvalorização devido às sanções seja permanente. Essa probabilidade aumenta quanto mais tempo o isolamento do ecossistema global de manutenção, registro, seguro, finanças e comércio de aeronaves continuar.

A razão é que, embora tecnicamente possa haver um mercado aberto e irrestrito, não está claro como a aeronavegabilidade seria tratada em um ambiente pós-sanção, e é altamente improvável que a aeronave seja aceita para venda sem dificuldades significativas (com compradores “fugindo” das aeronaves que voaram na Rússia).

As questões-chave aqui são a rastreabilidade das peças e a certificação dos componentes. As aeronaves na Rússia já estão operando há um ano, sem qualquer escrutínio externo ou suporte do fabricante. 

Artigos de notícias estão repletos de especulações de que peças originais reparáveis ​​estão sendo reutilizadas e trocadas para manter as aeronaves voando ou sendo usadas além de seus limites aprovados. A Rosaviatsiya (autoridade de aviação civil russa, ou CAA) indicou que permitirá a instalação de peças substitutas fabricadas na Rússia.

Mesmo antes do início do conflito, o mercado já havia deixado clara sua preferência. Esse movimento é visto até mesmo na Rússia para aeronaves construídas de acordo com os padrões ocidentais, e não russos. Após o conflito, as aeronaves suspeitas de transportar peças substituídas provavelmente enfrentariam uma batalha difícil para convencer os compradores de que essas peças eram de qualidade igual ou superior.

Além disso, mesmo que as sanções fossem suspensas amanhã e os compradores fizessem fila clamando por essas aeronaves, sua capacidade de registrar novamente, garantir e financiar essas aeronaves quase certamente estaria sujeita a atritos significativos. 

Deve-se ter em mente que, pelo menos para as Autoridades de Aviação Ocidentais, as autoridades russas violaram dois grandes tratados internacionais para a aviação: a Convenção de Chicago e a Convenção da Cidade do Cabo. 

Isso é extremamente importante porque a Convenção de Chicago rege desde 1944, entre outras coisas, o processo de transferência de registro de um país para outro. Mais recentemente, a Rússia ratificou a Convenção da Cidade do Cabo, que foi desenvolvida para facilitar o financiamento, reduzindo os riscos de reintegração de posse para credores e locadores.

Em um mundo pós-sanção, é extremamente duvidoso que outras Autoridades simplesmente voltem aos negócios como sempre no que diz respeito à Rússia. Aceitar um certificado de aeronavegabilidade de exportação da Rosaviatsiya com a mesma regularidade que o fazem, por exemplo, entre a FAA e a EASA.

Em vez disso, é provável que seja um processo doloroso no qual todos os componentes de qualquer aeronave comercial fora da Rússia seriam tratados com ceticismo. Esse ceticismo decorrerá de um ponto de vista de segurança, porém, há também um contexto político que não pode ser descartado e que pode perdurar por um bom tempo.

Mesmo que a aeronave fosse comercializada apenas dentro da Rússia, a violação da Convenção da Cidade do Cabo reduziria severamente a capacidade dos compradores de atrair financiamento de fora da Rússia. Os locadores e suas seguradoras estão atualmente expostos a bilhões de dólares em perdas potenciais e estariam compreensivelmente cautelosos no futuro próximo.

Tudo se resume a isso: a reversão das sanções, se ocorrerem, apenas removerá os obstáculos formais à comercialização que as aeronaves na Rússia enfrentam atualmente. No entanto, em um ambiente pós-sanção, a VV Aviation acredita que ainda existiriam barreiras comerciais significativas. 

Carlos Ferreira
Carlos Ferreira
Managing Director - MBA em Finanças pela FGV-SP, estudioso de temas relacionados com a aviação e marketing aeronáutico há duas décadas. Grande vivência internacional e larga experiência em Data Analytics.

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