Por que os jatinhos dos ricaços brasileiros nem sempre podem ser alugados a terceiros?

Ao longo deste ano, surgiram várias notícias envolvendo o uso de jatos privados por pessoas públicas, mas a lei brasileira determina quando o aluguel é permitido.

Bombardier Global 6000 – Foto por Benito Latorre (In memoriam)

Os casos mais recentes nesse contexto envolveram o presidente eleito, Luís Inácio Lula da Silva, que usou algumas aeronaves, incluindo o Embraer Phenom de Luciano Huck, o Bombardier Global dos donos da Prevent Senior e um Gulfstream G600 de seu amigo José Seripieri Júnior. Apesar de parecerem operações iguais, elas têm diferenças entre si e permitem contar como a aviação executiva funciona no Brasil e no mundo.

O primeiro caso envolveu o Phenom de matrícula PP-HUC, de Luciano Huck e da XP Investimentos. Neste caso, o avião apesar de ser do apresentador de TV, em conjunto com a XP, não era operado por eles na época do voo, mas sim pela ICON Táxi Aéreo. Neste tipo de operação, o dono não precisa do avião todos os dias e faz um acordo com a empresa de táxi aéreo para que ela opere para terceiros. Em compensação o dono não se preocupa com rotinas de manutenção, papelada e pilotos, já que é tudo fornecido pelo táxi aéreo.

Além disso, os custos de operação são reduzidos e fica mais fácil manter a aeronave, que ainda continua à disposição do dono, mas com pilotos do táxi aéreo. Assim, para fins de cadastro, a aeronave sai da função “TPP” para “TPX”, siglas que serão abordadas mais adiante nesta matéria

No segundo exemplo está o Global 6000 de matrícula PR-VDR, que já foi da mineradora Vale e hoje pertence à Air Jet Táxi Aéreo, cujos donos são os mesmos do plano de saúde Prevent Sênior. Este Bombardier é operado como de propriedade da Air Jet, que o registrou como “TPX” desde o início. A empresa de fretamentos também possui um outro jatinho menor, do modelo Learjet 45, além de alguns helicópteros da Airbus, sendo uma frota diversa para atender a qualquer cliente no Brasil.

E, por fim, chegamos no G600 de matrícula americana N600DJ, usado por Lula no voo ao Egito para participar da COP27. Vale destacar que a legislação americana é praticamente igual à brasileira, com poucas diferenças, já que os Regulamentos Brasileiros de Aviação Civil (RBAC) são adaptados dos FAR (Federal Aviation Regulations) americanos, assim como vários países o fazem.

Este N600DJ é um avião particular de operação privada, não podendo fazer táxi aéreo. No Brasil ele se enquadraria como “TPP”. Mas afinal o que significa essa sigla?

Entre regulamentos

A resolução 293/2013 da ANAC define as categorias de aeronaves no Brasil. São várias categorias que diferem de qual função exercem, sendo assim relacionada ao tipo de fiscalização que é feita, além dos requisitos para ter e operar um avião do tipo.

O Airbus que um passageiro pega na ponte Rio – São Paulo, por exemplo, é um “TPR”, ou Transporte Aéreo Público Regular. Já um avião bombeiro Air Tractor, que combate queimadas, é um “SAE”, ou Serviço Aéreo Especializado Público.

E existem outras duas categorias, a “TPX”, que é de Transporte Aéreo Público Não-Regular – Táxi Aéreo, e a “TPP” para Serviços Aéreos Privados. A primeira está dentro do RBAC de número 135, e a outra no RBAC de número 91, que inclusive são os mesmos números utilizados para os regulamentos aeronáuticos de mesma finalidade no exterior. As aeronaves de companhias aéreas estão no RBAC 121.

A ANAC define que os aviões e helicópteros dentro de “TPX” servem o público com transporte não-regular de passageiro ou carga, “mediante remuneração convencionada entre o usuário e o transportador, visando a proporcionar atendimento imediato, independente de horário, percurso ou escala”.

Já o “TPP” é definido para transporte de pessoas ou carga, mas “de transporte reservado ao proprietário ou operador, de serviços aéreos especializados realizados em benefício do proprietário ou operador, não podendo efetuar quaisquer serviços aéreos remunerados”.

A grosso modo, por ser um ser um serviço remunerado, que transporta mais pessoas, tanto o “TPR” quanto o “TPX” têm regras mais rígidas de funcionamento. Um exemplo clássico é que um Phenom 300, por exemplo, exige apenas um piloto para sua operação, segundo o manual da Embraer, o que é possível de se fazer se a aeronave for “TPP”. No entanto, o RBAC 121 e 135 exige que qualquer voo dentro destes regulamentos seja feito com dois pilotos.

Logo, o jato de Huck, ao ser passado para operação da ICON, vai ter que sempre voar com dois pilotos. Outras regras exigem manuais de operação do táxi aéreo ou companhia aérea, programas internos de segurança e outras medidas.

O TACA

Obviamente todos estes requisitos extras trazem um custo maior, assim como também uma maior segurança. E à luz de tudo isso ainda existe o “TACA”, jargão para “Transporte Aéreo Clandestino de Passageiro”, em que aeronaves “TPP” no RBAC 91 voam como se fossem de táxi aéreo.

Para o contratante, a vantagem é financeira, já que o custo é reduzido, mas isso pode representar menor segurança. O caso mais claro disso foi o do cantor Gabriel Diniz, que acabou fretando sem saber um aeronave de instrução e o piloto acabou não seguindo os regulamentos de voo, levando ao acidente fatal, segundo apontou o relatório do CENIPA.

E é exatamente para evitar e combater a prática do TACA que aviões privados não podem ser alugados diretamente para outras pessoas, sem que estejam sob operação de um táxi aéreo já constituído.

Existe um grande debate se isto é necessário e se o modelo deveria inovar para algo próximo da Uber, Turo e Buser, que são aplicativos que usam veículos terrestres de pessoas e empresas para realizarem viagens ou locações para pessoas privadas. Nos EUA, a FAA já proibiu a prática em 2014. Na época, vários aplicativos começaram a surgir no país, na onda de crescimento do Uber e do Lyft. Porém, a proposta era um pouco diferente de um TACA “clássico”: o piloto iria colocar no aplicativo qual a rota ele iria fazer por algum motivo e as pessoas podiam pedir uma carona, mas teriam que ajudar com os custos, mais se aproximando do modelo do Blablacar no Brasil.

Mas a ajuda de custos, mesmo que não envolva lucro líquido, é proibida pelos regulamentos tanto da FAA quanto da ANAC, que são claros em dizer que os aviões privados “não podem efetuar quaisquer serviços aéreos remunerados”. Ajudar na gasolina acaba sendo uma remuneração.

Em resumo, alugar um avião de um particular é permitido, mas existem regras a serem seguidas e aeronave precisa estar aprovada para táxi aéreo. Uma maneira fácil de ver isso é consultar o registro da aeronave na ANAC, que mostra claramente se é permitido ou não o Táxi Aéreo com aquele avião em específico.

Existe ainda o chamado compartilhamento de aeronaves, que é permitido para aeronaves “TPP”, mas o uso do avião fica restrito ao grupo de proprietários ou operadores listados no site da ANAC.

O empréstimo ou carona em si para amigos não é ilegal, mas nunca deve envolver compensações de qualquer natureza, como dito acima. Um exemplo recente é o de Luciano Hang, das Lojas Havan, que levou um grupo de amigos e empresários de Santa Catarina para a final da Libertadores no Equador, tudo dentro da lei, como os voos de Lula. Agora, se o uso em si de jatos privados, sendo eles “TPP” ou “TPX” é imoral ou não, já não é de competência do setor aeronáutico julgar.

Carlos Martins
Carlos Martins
Fascinado por aviões desde 1999, se formou em Aeronáutica estudando na Cal State Long Beach e Western Michigan University. #GoBroncos #GoBeach #2A

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