Processo de aprovação de novas empresas aéreas no Brasil ignora aspectos relevantes de crédito

Diante da suspensão dos voos da Itapemirim Transportes Aéreos na sexta-feira (17), que resultou no cancelamento de 513 voos até o dia 31 de dezembro (e não se sabe quantos mais depois dessa data), e afetou cerca de 46 mil passageiros, surgiram dúvidas sobre o processo de outorga para entrada de novas empresas aéreas no Brasil.

O que se espera

Para o bem do setor e da sociedade, o processo de outorga precisa ser, ao mesmo tempo, justo, ágil e robusto, a fim de garantir a segurança operacional, a competitividade das empresas e a proteção aos passageiros e agentes do setor. Esse último ponto é importante, pois uma suspensão abrupta dos voos, como no caso da Itapemirim, deixa um “rastro de corpos” pelo caminho, onde funcionários, clientes e fornecedores são obrigados a “abraçar” um enorme prejuízo.

No entanto, o que se observa é que a Lei que regula o processo de outorga no Brasil tem limitações quanto à análise fiscal e da capacidade financeira dos novos entrantes.

Qual a norma que rege

Em primeiro lugar, é preciso entender que tudo o que se executa no poder público é baseado em alguma regra (Lei). Com o processo de outorgas para exploração do transporte aéreo de passageiros não é diferente.

Sérgio Alexsander Leitão, Gerente Técnico de Outorga e Cadastro da Superintendência de Padrões Operacionais da ANAC, explicou durante audiência pública no começo de dezembro que “todo o processo de concessão de outorgas é disciplinado pela Resolução no. 377, que determina uma série de requisitos fiscais e jurídicos para que a empresa adentre ao mercado. Além deles, há os processos de certificação operacional, que são rigorosos e avaliam toda a condição operacional para assegurar que a empresa entre no mercado com segurança”.

Então, existe uma regra e a ANAC a segue à risca, como deveria ser. O problema é que a regra é limitante.

Numa perna só

Enquanto o processo de outorga é robusto dos lados operacional e de segurança, ele é frágil do lado fiscal e de capacidade financeira. Isso porque ignora aspectos básicos como, por exemplo, não analisa o grupo econômico e os sócios da empresa postulante, que são alguns dos maiores influenciadores nas decisões do dia-a-dia.

Apenas para efeito de comparação, antes de um banco conceder crédito a uma empresa, ele esmiúça todos os detalhes financeiros e fiscais não apenas daquele CNPJ que está pedindo o dinheiro, mas de todo seu grupo econômico, empresas relacionadas, sócios e administradores. A combinação de tudo isso é que fará o banco decidir se vai ou não dar o crédito.

Os bancos fazem isso porque sabem que uma pressão de caixa em outra empresa do grupo ou um sócio ganacioso podem induzir a desvios de finalidade no uso dos recursos, levar empresas ao limbo e, por consequência, não pagar empréstimo ou financiamento tomado.

No entanto, as leis brasileiras ignoram o grupo econômico e os sócios quando vão autorizar uma empresa aérea a operar, mesmo sabendo que milhares de pessoas e centenas de fornecedores podem ser lesados caso ela saia do mercado do dia para a noite.

Fiscal negligenciado

O representante da ANAC, em sua fala na audiência pública supracitada, ressaltou que a análise para a outorga é totalmente voltada para o CNPJ da empresa postulante. Ou seja, nenhuma outra empresa do grupo ou os sócios são analisados. Ele também disse que indicadores financeiros da empresa somente serão avaliados depois que ela entra no mercado e chega a 1% de participação e, mesmo assim, será limitado à empresa e não ao grupo.

Na prática, no caso da Itapemirim, isso significa que apenas o CNPJ da Itapemirim Transportes Aéreos foi analisado, enquanto todos os demais CNPJs do grupo foram deixados de lado. Lembrando que 97% do capital da ITA pertence à Viação Itapemirim e, portanto, elas são do mesmo grupo econômico. Da mesma forma, o histórico de negócios dos sócios também não foi analisado.

Se a Lei previsse uma análise mais robusta, a Itapemirim seria melhor avaliada antes de ter concedida a sua outorga. O fato de estar em recuperação judicial há cinco anos já implica em dizer que a companhia pode não ter crédito junto a bancos de primeira linha ou, se tiver, esse crédito custar muito caro, segundo ditam as práticas de mercado. Por outro lado, a empresa deve a credores e existe muita polêmica em torno do plano de recuperação, com diversas contestações por várias partes. Ainda assim, tudo isso foi deixado de lado porque a empresa apresentou um “CNPJ novo” para a ANAC.

O que a Lei poderia prever

Ao invés de ignorar esses aspectos, a Lei poderia incorporá-los e transformá-los em gatilhos. Ou seja, considerar a análise do grupo econômico na hora de conceder a outorga e estabelecer limitações, dependendo da sua condição financeira. Além disso, o regulador poderia fazer um monitoramento rigoroso dos indicadores financeiros dos novos entrantes.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o governo pode limitar o tamanho da frota e as rotas das empresas iniciantes e ir liberando com o tempo, até ela atingir a maturidade, isso aconteceu recentemente com a empresa Western Global, como falamos aqui. Em novembro, a empresa de sete anos recebeu autorização do Departamento dos Transportes para aumentar a quantidade de aviões e rotas.

O exemplo da Itapemirim mostra que ainda há pontas soltas que podem ser trabalhadas, pelo bem da sociedade e do setor aéreo.

Carlos Ferreira
Carlos Ferreira
Managing Director - MBA em Finanças pela FGV-SP, estudioso de temas relacionados com a aviação e marketing aeronáutico há duas décadas. Grande vivência internacional e larga experiência em Data Analytics.

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