O Projeto Anequim representa um importante marco na aviação mundial ao ter cravado com maestria os cinco recordes mundiais em que foi colocado à prova na categoria FAI C-1a (aeronaves com peso máximo de decolagem de 300 a 500 kg). O nome proveniente do tubarão Anequim, o mais rápido dos oceanos, vai ao encontro das excelentes características fluido-dinâmicas da aeronave CEA-311, movida por um Lycoming 4 cilindros alterado pela Sky Dynamics, e cuidadosamente projetada em computador.
As cinco conquistas, obtidas com grande folga em relação aos detentores das marcas anteriores, mostram que sobrou perfeição e dedicação desde o projeto até a construção da singular aeronave. Mas não apenas os recordes ficam como legado do tubarão dos céus. A aviação brasileira tem muito a se beneficiar, como será observado a seguir.
Buscando trazer aos leitores um pouco mais das experiências envolvidas com um projeto de tal sucesso, entrevistamos Gúnar Armin Halboth. Ninguém menos do que o piloto que, além de bater os recordes a bordo do Anequim, acompanhou o projeto do início ao fim, dando grandes contribuições com base nas suas experiências na aviação e nos voos do projeto anterior, o também recordista CEA-308.
A vontade seria entrevistar cada um dos membros da equipe do projeto. Uma equipe composta não apenas pelos protagonistas principais, o piloto Gúnar e o professor e idealizador Paulo Iscold. Mas também por estudantes de UFMG que puderam colocar em prática seus conhecimentos de graduação e adquirir um imensurável aprendizado, motivo este que torna o Anequim tão importante para nossa aviação. Sem dúvidas todos teriam experiência e histórias mais do que interessantes para contar, com diferentes pontos de vistas, mas ficamos com o Gúnar como representante.
Gúnar iniciou seu envolvimento com a aviação ainda na infância, no aeromodelismo. Gostava de montar e projetar modelos de planadores de lançamento livre, kits controlados a cabo e rádio controlados. Aos 10 anos ganhou de aniversário um passeio de Paulistinha no Rio de Janeiro.
Aos 16 anos de idade começou a voar planadores e obteve seu brevê, e aos 19 anos chegou a seu primeiro trabalho, como instrutor de voo em aviões. Em seguida tirou a licença de IFR e passou a dar instrução com esse foco, seguido por multimotores. Prosseguiu então para a aviação executiva e posteriormente para a comercial, voltando mais tarde para a executiva, onde permanece até hoje.
Com a experiência de mais de 14.500 horas de voo e 9 recordes mundiais (os quatro com o CEA-308 e os cinco com o CEA-311 Anequim), Gúnar nos conta a seguir diversos detalhes, iniciando com sua carreira e prosseguindo até as experiências a bordo do tubarão dos ares, descrevendo com detalhes cada um dos voos recordista do Anequim.
AEROIN – Durante sua carreira na aviação comercial, executiva e acrobática, em quais empresas você trabalhou e quais modelos de aeronave você pilotou?
Gúnar Armin – Meu primeiro emprego foi como instrutor de voo no Aero Clube de Juiz de Fora, voando Paulistinha, PA18, Uirapuru, Cessna 150 e 172. Depois dei instrução IFR e Multi em Tupi e Seneca I.
Na Asa Branca Táxi Aéreo fui Cmte. de Sêneca II e Navajo.
Na Varig, Co-Piloto de Electra II, B 737-200, B 747-400, DC 10, B 747-300, B767.
Fui Cmte. e instrutor de B737 300, 400, 700 e 800.
Na Eva Air (Em Taiwan, com licença sem vencimentos da Varig), Co-Piloto de MD 11.
Na Shenzhen Airlines (China), Cmte. de B 737-300, 700, 800 e 900.
Na Ryanair (Inglaterra), Cmte. de B737-800.
No Brasil voei na Executiva como Cmte. em empresas privadas e como Free Lancer: Falcon 50, Gulfstream 4, Legacy, Hawker 800, Citation CJ2, Cessna 206 e Beech Bonanza.
Hoje voo o helicóptero Agusta 109.
Na acrobacia voei o Cap 10, Christen Eagle II, Pitts S-1S, S-2A e S-2B, Extra 300S e L, MDM Fox, Sukhoi 29 e One Design. Fui campeão Brasileiro da Categoria Avançada duas vezes e uma vez Campeão Geral, sempre com o Pitts S-1S. Também estive envolvido em Shows aéreos com essa mesma aeronave. Tive muito orgulho de ter sido convidado para fazer shows no aniversário de 50 anos do EDA e de ter sido chamado pessoalmente pelo Cel. Braga para Show no Musal.
AEROIN – Que nível de importância você considera que sua experiência profissional teve no desenvolvimento do Anequim?
Gúnar – Acho que no caso do Anequim a experiência profissional ajudou no sentido de me permitir aeronaves de alta velocidade – no caso os jatos – e também na disciplina que adquiri voando em empresas de alto padrão operacional. Mas na verdade a aviação desportiva teve muito mais influência, em especial a acrobática, já que me deu acesso a aeronaves de pilotagem mais crítica e desafiadora.
AEROIN – Quando e como você conheceu a equipe do CEA (Centro de Estudos Aeronáuticos) da UFMG, e como esse contato evoluiu até você pilotar o CEA-308?
Gúnar – Me parece que foi em 2001. Quando estava na acrobacia, em determinado momento tinha dúvidas com relação à integridade estrutural da asa de minha aeronave, o Pitts S-1S. Na época um amigo me indicou o engenheiro Paulo Iscold, do CEA, que fez uma inspeção na aeronave que culminou com um reparo na mesma. A partir daí fomos aumentando o contato, inclusive em campeonatos de acrobacia.
Mais para frente resolvemos fazer uma melhoria nos ailerons do Pitts, com ailerons SS com uma “pitada” de engenharia do CEA. Acabei sendo campeão geral brasileiro com essas modificações.
Houve uma época em que eles tinham dado uma pausa no desenvolvimento do CEA 308 devido a um acidente por falha de motor (o piloto não se feriu mas não prosseguiu nos ensaios por motivos pessoais). Era um projeto para bater recordes mundiais de velocidade na categoria mais leve da FAI, a C-1a0, de até 300 kg de peso máximo de decolagem.
Soube do projeto e propus de dar prosseguimento aos ensaios. Eu inclusive compraria um motor usado 4 tempos, já que o anterior, 2 tempos, já não inspirava confiança na equipe. Minha proposta foi aceita e culminou com 4 recordes mundiais, os primeiros de um brasileiro em aeronaves motorizadas após Santos Dumont!
AEROIN – Fazendo um paralelo com o Anequim, que foi projetado especificamente para suas dimensões físicas, houve dificuldades para se adaptar ao CEA-308, uma vez que este não foi projetado sob medida para você?
Gúnar – O antigo piloto era mais baixo, por isso eu fico um pouco apertado nele. Minha cabeça encosta no canopy e minhas canelas também roçam na longarina da asa. Mas nada realmente sério.
AEROIN – Como ocorreu o seu primeiro contato com o projeto Anequim? Quais foram suas impressões e expectativas naquele momento inicial?
Gúnar – O projeto nasceu com um desenho do Paulo Iscold que me enviou por mensagem de texto, perguntando se eu topava. A resposta foi imediata: vamos em frente!
Sabia desde o início que iríamos cumprir todas as metas. Só dependia de mim ter certeza de que ele seria pilotável dentro das limitações que nós mesmos decidimos de visibilidade, excessiva limpeza aerodinâmica (o avião não quer pousar…) e trem de pouso muito curto, deixando pouca sobra para a hélice livrar o chão. Não podia deixar que acontecesse nenhum dano nos voos iniciais.
AEROIN – Você teve uma importante participação no projeto Anequim ao fornecer para a equipe de projeto as suas impressões e necessidade como piloto. Quais detalhes da aeronave você considera que tiveram maior influência das suas sugestões?
Gúnar – A visibilidade, onde acho que acertamos em cheio; posição de pilotagem, onde também não fui nada exigente em conforto; sistema de compensador de profundor, que funcionou muito bem na nossa ampla gama de velocidades; e o manete de potência, que se movimenta mais na vertical que na horizontal.
AEROIN – Qual foi a sensação durante os primeiros voos de teste e, posteriormente, durante a conquista de cada um dos cinco recordes mundiais?
Gúnar – Muita responsabilidade.
Apesar de a aeronave ser pequena, o Projeto Anequim é imenso, fruto do trabalho de muitas pessoas. Mas nestes momentos tudo fica por minha conta. Não podia decepcionar ninguém.
Mas quem não decepcionou foi o próprio Anequim. Como gosto de lembrar, no primeiro voo ele não se comportou como eu esperava, mas sim como eu gostaria. Nenhuma tendência e até a trimagem na decolagem estava correta.
O único porém foi o problema em uma haste do atuador dos flapes, que impediu que os utilizasse para o primeiro pouso. Com isso, por ter pouquíssima resistência aerodinâmica (a área plana equivalente dele é menor que uma folha de papel A4), mesmo cruzando a cabeceira na velocidade correta ficou mais difícil de reduzir a velocidade durante o pouso. Optei por cortar o motor no toque e mesmo assim só parei no finalzinho da pista de 1.500 metros.
A visibilidade frontal nos pousos, como esperado, sempre foi a maior dificuldade, demandando pistas largas. E na atitude do toque a asa quase cobre a linha do horizonte, dificultando também o julgamento de profundidade. Vale lembrar que, como optamos por um trem de pouso muito curto, a hélice fica muito próxima do solo, por isso optei por só efetuar pousos do tipo “três pontos”.
Nos poucos voos que se seguiram fomos esticando o envelope e já pudemos perceber que os recordes pretendidos eram plenamente viáveis. Era só uma questão de oficializar.
Com a colaboração da Força Aérea Brasileira, utilizamos a Base Aérea de Santa Cruz.
Recorde de 15 km
Com apenas cerca de 11 horas totais de voo e nenhum ensaio, optamos por começar com o recorde de 15 km, que seria o mais fácil de ser conquistado. São duas passagens na mesma direção mas em sentidos opostos. Seria a primeira vez que voaríamos ao nível do mar, onde o motor aspirado desenvolve mais potência.
Optamos por voar a cerca de 1.500 pés. Minha dificuldade inicial ficou por conta do GPS onde tinha plotado os pontos de entrada e saída. No setor norte havia morros nas redondezas e ele mostrava mensagens de terreno que me atrapalhavam a visualização da tela. Fiz quatro passagens para garantir que teria duas boas na sequência. Pousei sem ter certeza de que teria feito as linhas corretamente.
Ao final de algumas horas tivemos a confirmação de que tínhamos passagens boas e a velocidade superou as expectativas: Voamos a 511 km/h, contra os 455 km/h do recorde anterior. E este pertencia ao famoso Nemesis de Jon Sharp, que pode ser visto em destaque no museu mais visitado dos EUA, o Smithsonian.
Recorde de 100 km
A próxima tentativa foi o de 100 km. A rota escolhida ia em direção a Parati, sobre a água. O ponto de virada, sobre uma ilha que não conhecia, seria o mais crítico. Neste recorde o que conta é o tempo total, então tenho que perder o menor tempo possível, sem correr o risco de desperdiçar a passagem. Neste caso também utilizei um colete inflável. O voo transcorreu bem, sem imprevistos e com uma virada aceitável. Resultado? Velocidade média de 490 km/h, destruindo por mais de 100 km/h de vantagem o anterior de 389 km/h de Richard Young!
Recorde de 3 km
No dia seguinte escolhemos por começar pelo principal e mais interessante: o de 3km. Consiste em quatro passagens na mesma direção e sentidos contrários. A curva não conta.
Por ser feito a baixa altura, escolhemos os primeiros minutos depois do nascer do sol, quando a atmosfera está mais calma. Não queria nenhuma turbulência voando a mais de 500 km/h a poucos metros do chão… O percurso seria a própria pista, que possui este comprimento (Incluindo stopways). Fora isso, temos 1 km de cada lado em que já temos que estar abaixo de 100 metros de altura para não tirar vantagem de um possível mergulho.
Assim que o sol nasceu, já estávamos decolando. A primeira passagem seria no sentido oeste. Potência a pleno e alinho com a pista. As Temperaturas do motor totalmente controladas e RPM próxima a 3.000, ainda abaixo da que pretendemos atingir em futuro próximo. Cruzo a cabeceira a uns 3 metros de altura e a velocidade se faz notar. Vejo com a visão periférica alguns pássaros decolando na lateral da pista, mas tento manter o avião firme na trajetória. A visão diretamente à frente é restrita pela configuração.
No final do primeiro “tiro” observo uma antena no alinhamento da pista que não sabia que existia. Felizmente estou uns metros à direita e ela não interfere. Faço um “balão” bem aberto para retornar e então o sol obstrui muito minha visão. Recorro ao GPS para me ajudar no alinhamento, mas mesmo assim acabo entrando ligeiramente à direita do ideal, mas ainda assim dentro do aceitável. O enorme hangar do Zeppelin é a minha melhor referência.
Segunda passagem ok! As duas seguintes se repetem com as mesmas dificuldades, mas finalizo com a certeza de ter um novo recorde mundial! Algumas horas depois o resultado: 521 km/h, enorme diferença sobre os 466 km/h do recorde anterior, também de Jon Sharp, com o Nemesis!
Veja no vídeo a seguir uma das passagens do Anequim a mais de 500 km/h.
Anequim – Passagem a mais de 500 km/h
Recorde de 500 km
O recorde de 500 km é muito interessante, já que envolve cerca de uma hora voando quase todo o tempo sobre a água e a “virada”, sobre a Ilha do Montão de Trigo, está incluída no tempo total. Faço uma tentativa, que me pareceu boa. A virada satisfatória, embora a meteorologia estivesse aos poucos piorando. Infelizmente para descobrir depois que minha entrada tinha sido fora dos limites laterais, ou seja: jogada fora por minha culpa.
A segunda tentativa foi com meteorologia ainda um pouco pior. Tive que entrar em nuvens por algumas vezes, o que compromete um pouco a aerodinâmica do aerofólio laminar. Optei por não me preocupar em manter a altura constante, mas sim manter a atitude. De qualquer forma devido ao relevo (ilhas e penínsulas) às vezes sou obrigado a subir e descer um pouco. Neste recorde o combustível é apenas o suficiente para o percurso com uma reserva muito pequena. Sou obrigado a utilizar mais dois pequenos tanques que temos nas minhas costas.
Durante algum tempo também deixo o alternador desligado para conseguir um pouquinho a mais de potência. Em alguns momentos a temperatura chega ao limite do que estabelecemos como ideal e enriqueço a mistura para resfriar um pouco os cilindros. A virada foi ok, apenas cuidando de manter a separação de algumas aves ao redor da ilha. Procuro não exagerar nos G’s da curva, mas fico satisfeito. Durante algum tempo fico com o sol me atrapalhando a visão.
Desta vez deu tudo certo. Ao fim do voo temos outra marca incrível: 493 km/h contra 387 km/h do recorde anterior, de Klaus Savier, com um Vari Eze. Novamente mais de 100 km/h de vantagem!
Recorde de 3 km de subida
A maior incógnita para nós era com respeito ao recorde de subida a 3.000 metros. Não era um objetivo do projeto, mas sabíamos que o Anequim tem uma relação peso/ potência excelente, por isso resolvemos tentar. Tínhamos uma boa hélice de baixa velocidade, mas ainda não testada ao nível do mar. E a marca anterior, de 3min08s do Bruce Bohannon com o Pushy Galore (hoje no museu da EAA em Oshkosh) era incrível.
Configuramos a aeronave para o menor peso possível, eliminando alternador, GPS, colocando um volante de motor aliviado, combustível mínimo e até eliminando o pára-quedas. Como sabíamos que a refrigeração não seria suficiente, optamos por um aquecimento mínimo no motor antes da decolagem, já alinhado na pista e com autorização para decolagem. O Paulo Iscold segurou fisicamente a cauda enquanto aumentava a potência para em seguir soltar e eu completar a manete.
A aceleração foi brutal e, em menos de 7 segundos já estava voando e com um ângulo de 28 graus, aumentando para 30. Aproximadamente o dobro de um avião comercial. A razão de subida também era gritante, mostrando inicialmente mais de 5.000 pés por minut o! A meio caminho fui ajustando a mistura para minimizar a perda de potência e MUITO rapidamente já estava cruzando mais de 10.000 pés, avisando a equipe de terra. A temperatura dos cilindros já entrava no vermelho.
Não levei relógio, então não podia imaginar se tinha de fato batido o recorde. Subi mais uns 1.000 pés só para garantir, reduzi bem a potência (mas não totalmente) e apliquei os flapes, para manter velocidade baixa e não refrigerar os cilindros rápido demais. O pouso com a hélice tripá de subida é muito mais fácil, pois o arrasto a mais encurta bem a “flutuada” no pouso. Ao parar, ví o Paulo Iscold chegar com um sorriso enorme. É que ele estava cronometrando do solo e me disse que tinha ficado bem abaixo de 3:00. Na verdade o número real foi 02:26, um absurdo em relação ao anterior!
Missão cumprida!
Veja o vídeo completo da conquista do recorde de 3 km de subida.
Anequim – Recorde de 3 km de subida
O mais interessante é que durante os voos fico tão concentrado que a emoção não tem vez. Mas quando acompanho as filmagens, ouço o ronco do motor de fora, fica até difícil de imaginar que era eu mesmo, fazendo aquilo tudo.
Missão cumprida e a certeza de estar entrando para a história!
AEROIN – Em sua opinião, de que forma a aviação brasileira beneficia-se com os trabalhos da equipe do projeto Anequim, bem como dos estudantes que participaram com estudos e pesquisas?
Gúnar – Os benefícios são enormes! O objetivo primário do Projeto Anequim é a formação de Engenheiros Aeronáuticos do mais alto nível, capazes de não se intimidarem pelo desafio de fazer “o melhor do mundo”. E de se confrontarem com os problemas e desafios reais que aparecem quando de fato se faz uma aeronave sair do computador para voar de verdade.
Acredito que a maioria destes estudantes vai seguir carreira aqui mesmo no Brasil, ajudando a projetar a nova geração de aeronaves.
Deixamos aqui nosso especial agradecimento ao Gúnar pela atenção dada à entrevista. Mas também não deixamos de agradecer a toda a equipe envolvida no projeto Anequim, por mostrar ao Brasil que a conquista só depende de dedicação, empenho e foco nos objetivos almejados.