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Saiba como era viajar nos primórdios da aviação com o brasileiro que pilotou o Ford de 1929

Como comentei no outro post sobre o Ford de 1929, eu tomei conhecimento de que o comandante Vinicius Ayres teve uma honra ainda maior do que a minha ao comandar o Trimotor ali mesmo, do cockpit.

Pensando em compartilhar experiência dele com mais gente, fiz uma rápida entrevista de quatro questões, veja que legal. As fotos e o vídeo também são dele, pedi que ele compartilhasse com a gente.

 

1. O que você sentiu no momento em que sentou no cockpit?

Sinceramente, foi uma mistura gigante de sensações. No dia que o voei, um colecionador levou um FORD 1929 (o carro) e parou ao lado do nosso FORD 1929 (avião) para fazer fotos. Adicione a isso um som ambiente na rampa, com músicas da época e duas finas damas, vestidas como funcionárias da companhia aérea, recepcionando os clientes que iriam voar. Ambas as senhoras demonstravam que tinham um pouco mais de “experiência de vida”… (Não digo que eram de 1929, mas estavam próximo disso! rs). Não tinha como não sentir algo.

trimotor_cockpit

Dentro do cockpit, me senti em um caminhão antigo, mas que acabou de sair da fábrica. Isso por que a aeronave que voei não tinha “yoke”, mas um VOLANTE MESMO! Com direito até a “folga” na direção… Essa aeronave é de um museu, que a mantém muito, mas muito próximo do original. Segundo me informaram, ele está 98% original, sendo que os 2% que não são originais ficam por conta dos motores, que foram trocados (o original de 1929 não é mais fabricado e nem tem peças de reposição!), alguns detalhes de interior que desgastam com o uso (como pisos e forração dos assentos) e alguns instrumentos modernos, como um transponder com GPS integrado e um rádio mais atual (exigências de segurança e até para manter a aeronave em condições de aeronavegabilidade).

 
2. No seu sentimento, qual a diferença entre voar uma aeronave atual e voar um Ford Trimotor?

Olha, posso dizer, sem medo de errar ou exagerar, que são duas coisas COMPLETAMENTE diferentes. Claro que os quesitos de aerodinâmica, operação básica e regras gerais de voo são praticamente as mesmas de aeronaves convencionais atuais… Mas no ponto que aborda a pilotagem na cabine, é um pouco diferente.

O Tri-Motor não tem flaps. Os cabos de comando ficam no lado de fora e expostos ao tempo. Os instrumentos dos motores das asas ficam no suporte da nacele do motor (nas asas). Somente os instrumentos medidores do motor do nariz estào na cabine, junto com os básicos de voo (airspeed, altímetro, “turn and slip coordinator” e uma bússola magnética). Se você quer saber a pressão do óleo do motor da asa direita, tem que olhar para o suporte do motor da asa direita e lá fora!

Foto original em www.airliners.net

No geral, o Ford Tri-Motor (ou “Ganso de Lata”) não passa de um “Skyhawk super crescido”. Falo isso por que ele decola com 55kt, aproxima para pouso (na final) com velocidade de 60 a 65kt e tem velocidade máxima de cruzeiro de 95Kt. São praticamente as mesmas velocidades do Cessna 172.

No voo em si, comandar o tri-motor exige um pouco de força. Isso pois ele é bem pesado… Afinal, é uma aeronave grande (para 11 pessoas, sendo 2 pilotos, 9 passageiros + malas) e com grandes superfícies de comando acionadas à cabos e polias. Era de se esperar um pouco de dificuldade na operação. Ele também tem uma resposta bem tranquila e suave. Você comanda e ele demora a reagir, o que é bom para o conforto do passageiro, mas exige atenção do piloto para antecipar ações em um voo.

Tirando esses detalhes, existe a energia e sensação de voar ele, que é simplesmente inenarrável… E claro, isso cria toda uma atmosfera especial que coloca o Ford Tri-Motor como experiência obrigatória para qualquer amante da aviação (moderna ou histórica).

 

3. Na sua opinião, o que significava uma viagem de avião para as pessoas da década de 20/30?

Tenho total certeza de que viajar de avião (não só na década de 20 e 30, mas até bem pouco tempo), era algo impossível para uns e uma parte dos luxos das vidas de outros.

Certamente era um acontecimento social! Existia todo aquele “glamour” do “estar em um aeroporto” (que algumas raras e bravas companhias mantém vivo até hoje), do embarque direto na rampa (pois o Tri-Motor é convencional e sua porta de entrada é próxima do solo, o que dispensa o uso de grandes escadas) e também lembro da era do serviço absoluta e completamente personalizado (pois neste época poucos podiam voar e era caro, portanto as companhias tratavam os poucos clientes como diamantes a serem muito bem protegidos e conservados).

Some a isso os chiques e exclusivos uniformes da tripulação e da equipe de solo (desenhados por consagrados estilistas da alta costura da época), o serviço de bordo com “champagne” (que era servido antigamente em taças de cristal!) e outras iguarias…

Certamente uma opção de viagem exclusiva e cara, disponível apenas a uma pequena fatia da sociedade. E considerando isso, muitas vezes reunia a mesma nata da sociedade local no voo, o que tornava a viagem ainda mais “social” e, por que não dizer, uma extensão do clube de cavalheiros (que se reuniam para conversar e fumar seus charutos) e damas (que se divertiam contanto histórias do dia-a-dia).

 

4. Dada sua experiência nos Estados Unidos, qual o caminho que o Brasil precisa trilhar para levar a aviação para mais próximo das pessoas e, então, permitir que sonhos de voar em aeronaves clássicas também sejam possíveis por aqui?

Acho que o Brasil tem MUITO a evoluir em muitos aspectos. INCLUSIVE no quesito “memória”, pois nos EUA eles tem prazer e honra de cuidar de suas origens. Eles mantém suas memórias e história. Aqui, muitas vezes tenho a sensação de que preservar a história é coisa “ultrapassada” e que só serve pra gastar dinheiro, afinal, quem visita museus com regularidade? Quem mantém museus, financeiramente falando? O Brasil não tem memória, só lembranças recentes, pois memórias de longa duração se apagam muito fácil e rapidamente aqui. E, sem isso, nunca teremos o que os EUA tem: respeito a seu passado e busca de melhoria para o futuro.

E olha, ainda comparando o que vivenciei lá com a realidade daqui, acho que precisamos falar muito seriamente. A distância que senti na aviação dos EUA e a aviação no Brasil seria algo como da “Era espacial” (EUA) para a “idade das pedras” (Brasil).

E antes que alguém se ofenda, quero deixar claro que não estou falando do recurso humano, pois os profissionais do Brasil são extremamente bem gabaritados! Estou falando de profissionais de solo, voo e controle do espaço aéreo.

O problema é a falta de tecnologia, de novos investimentos e ações de desburocratização de processos, leis que não fazem sentido (ou que foram erradamente traduzidas para o português por alguém que representava a autoridade de aviação no país e assim ficaram até hoje, imutável), auxílios à navegação obsoletos, como os NDBs daqui no Brasil, que simplesmente não existem nos EUA há mais de 15 anos. Processos morosos e caríssimos de renovação de carteiras para que o profissional possa trabalhar no Brasil, péssimo trato com o cliente por parte de alguns representantes da autoridade aeronáutica brasileira, que além disso, muitas vezes tratam mal, desrespeitam e atendem até com certo desdém os profissionais que a ela precisam recorrer (e que esta mesma autoridade esquece é que estes profissionais são seus CLIENTES e são CIDADÃOS, e como tal, deveriam ser servidos pode eles).

Dentre outros muitos problemas que qualquer piloto ou pessoa que se envolva de maneira séria encontra na aviação brasileira. Vale dizer que, felizmente, ainda existem profissionais sérios dentro dos corredores da autoridade brasileira de aviação e é nesses que colocamos nossa confiança.

 

Sobre o entrevistado

Vinicius Ayres, 40 anos, é jornalista profissional e relações públicas diplomado. Checou o piloto privado, instrumento e piloto comercial (CMEL) na Epic Flight Academy, em New Smyrna Beach, Florida – USA e está convalidando sua licença FAA junto à ANAC, para voar no Brasil, na EJ – Escola de Aeronáutica Civil de Jundiaí – SP

 

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