Após incidente grave de dados errados em decolagem de Embraer 195-E2, investigação lista lições a serem aprendidas

Avião Embraer E195-E2 KLM Cityhopper
Embraer 195-E2 da KLM Cityhopper – Imagem: Embraer

O Conselho Holandês de Segurança dos Transportes (DSB) publicou hoje, 21 de setembro de 2023, o relatório final com as lições a serem aprendidas a partir de um incidente com um Embraer 195-E2, incluindo também uma recomendação à fabricante aeronáutica brasileira.

Classificada como um incidente grave, a ocorrência se deu no Aeroporto Berlin Brandenburg em 12 de setembro de 2021, com a aeronave registrada sob a matrícula PH-NXD, operada pela KLM Cityhopper.

Como a aeronave é registrada na Holanda, a Autoridade Alemã de Investigação de Segurança (BFU) delegou a investigação ao DSB.

A investigação explorou os seguintes aspectos: aprendizagem para fins de prevenção de incidentes de desempenho de decolagem; procedimentos de decolagem; uso e projeto do EFB (Electronic Flight Bag).

A ocorrência

Em 12 de setembro de 2021, ocorreu um grave incidente com um Embraer 195-E2 no Aeroporto Berlin Brandenburg, na Alemanha. A aeronave decolou com uma quantidade selecionada de empuxo de decolagem, com base em dados de decolagem incorretos.

O Conselho de Segurança Holandês investigou o incidente e descobriu que a aeronave decolou da interseção L5 – como a tripulação pretendia – enquanto o cálculo de desempenho foi baseado na interseção K5.

O comprimento real da pista disponível era 1.320 metros menor que o comprimento da pista utilizado no cálculo dos parâmetros de desempenho. A configuração de empuxo selecionada foi tal que a aceleração da aeronave foi muito lenta para decolar com segurança da interseção L5.

Imagem: DSB

Como resultado, a aeronave decolou 443 metros antes do final da pista. As margens de segurança foram reduzidas durante a decolagem. A aeronave provavelmente não teria sido capaz de abortar com segurança a decolagem em velocidades próximas à V1 (velocidade de decisão, na qual, como resultado de uma falha de motor ou outras razões, é assumido que o piloto tem que decidir entre continuar ou descontinuar a decolagem).

A investigação

Incidentes relacionados a dados de decolagem incorretos ocorrem frequentemente em todos os tipos de aeronaves e operadores. A persistência deste tipo de ocorrência é um problema antigo e complexo.

Ainda não existe uma solução técnica que aborde a vasta gama de factores subjacentes à utilização de dados de decolagem errados. É, portanto, importante que os operadores aprendam o máximo possível, tanto retroativamente – a partir das ocorrências – como proativamente, com o objetivo de reduzir o número destes incidentes.

É por isso que o Conselho de Segurança Holandês investigou o incidente de 12 de setembro de 2021 com foco na aprendizagem do operador em relação ao risco de utilização de dados de decolagem errados.

Fatores contribuintes

Os pilotos afirmaram que ambos selecionaram acidentalmente a interseção K5 em vez de L5 no aplicativo de cálculo de desempenho de decolagem.

Os fatores que contribuíram incluíram problemas de tela sensível ao toque, como a falta de feedback do sistema sobre a localização do dedo e o problema do “dedo gordo”.

Além disso, a falta de feedback visual na aplicação de cálculo de desempenho (sinóptico do aeroporto) e a presença de opções normalmente não utilizadas (interseções de pistas) no menu suspenso desempenharam um papel importante.

O erro de seleção poderia se propagar porque durante a verificação cruzada os pilotos provavelmente se concentraram apenas nos resultados do cálculo de desempenho. Além disso, a tripulação confiou no aplicativo de cálculo de desempenho.

Aprendendo com a ocorrência

A ocorrência não fez com que os pilotos pensassem que o incidente ultrapassou o nível de gravidade para o qual é necessário entrar em contato imediatamente com o Centro de Controle de Operações do operador.

Como consequência, a Organização de Segurança e Conformidade (SCO) do operador não foi contactada imediatamente e, portanto, não teve a oportunidade de proteger o gravador de voz da cabine nem de entrevistar a tripulação logo após o evento.

A tripulação de voo apresentou um relatório de segurança aérea (ASR) à SCO após o pouso em 12 de setembro de 2021.

A SCO iniciou uma investigação limitada (uma avaliação) através da realização de entrevistas, revisão de dados de voo, consulta de investigações anteriores sobre incidentes semelhantes e análise desta informação.

O operador concluiu que não era necessária uma investigação mais aprofundada da ocorrência, uma vez que pouco poderia ser aprendido e pouco poderia contribuir para as mitigações já implementadas em investigações anteriores. O fato de dados errôneos de decolagem terem sido priorizados como uma preocupação de segurança e o evento ter sido classificado como de alto risco não teve influência nesta decisão.

A operadora tomou duas ações mitigadoras adicionais após a investigação limitada da SCO. Primeiramente, o piloto-chefe enviou um e-mail com informações gerais sobre dados errôneos de decolagem para conscientizar. Em segundo lugar, as informações do aeroporto nos manuais foram ajustadas, para evitar confusão relativamente à designação da pista.

Aprender para evitar o uso de dados de decolagem errados

O operador gere a segurança através do seu Sistema de Gestão de Segurança (SMS), de acordo com as diretrizes e quadros regulamentares existentes. Isto proporciona ao operador uma abordagem estruturada para gerir os riscos na sua operação. O operador possui uma estrutura para aprender realizando investigações de segurança.

No período 2012-2021, ocorreram vários incidentes relacionados com dados de decolagem errados e foi formulada uma preocupação de segurança. No entanto, estes incidentes não foram investigados pela SCO, porque esta argumentou que deveria ser realizada uma investigação preditiva (uma investigação de segurança antes da implementação de uma alteração).

Portanto, o DSB afirma que lições valiosas a nível técnico e processual detalhado podem ter sido perdidas e que parece que falta o equilíbrio entre ter ocorrências suficientes para aprender e evitar que múltiplas investigações tenham resultados semelhantes.

Um fator dificultador para o conhecimento do perigo da utilização de dados de decolagem errôneos é a falta de dados de ocorrência, o que não é exclusivo deste operador. Os pilotos nem sempre reconhecem ou reportam ocorrências relacionadas com dados de decolagem errados e o atual programa de monitoramento de dados de voo é incapaz de detectar todas as ocorrências.

Portanto, o operador não foi capaz de monitorar o número de ocorrências relacionadas com dados de decolagem errados, de realizar análises de dados confiáveis, de avaliar a necessidade de investigações e medidas de segurança e de monitorar o efeito das medidas já tomadas para evitar a utilização de dedos errados de decolagem.

Além disso, a falta de metas de segurança diretamente relacionadas a dados errôneos de decolagem se devia à falta de dados. Portanto, as metas de segurança não levaram o operador a tomar medidas que abrangessem toda a extensão do problema.

Aprendendo com o trabalho realizado

A operadora reconhece que os funcionários desempenham um papel importante em uma organização que aprende e toma ações para capturar o conhecimento dos funcionários sobre os processos existentes, sobre como o trabalho é feito na prática e sobre as ocorrências.

Além disso, a operadora trabalha de acordo com os princípios da Cultura Justa e diversos aspectos que podem contribuir para uma cultura aberta estão presentes na operadora. A operadora também possui uma estrutura de diálogo e discussão com os pilotos.

No entanto, a qualidade da informação obtida dos funcionários pode ser melhorada através de perguntas mais abertas e da garantia de uma abordagem sistemática à obtenção de contribuições dos pilotos.

O operador não possui uma estrutura para aprender com o trabalho realizado. O operador pode aprender mais com o trabalho realizado, questionando as suas próprias operações e investigando porque é que algum trabalho não é realizado conforme concebido ou imaginado, quando isso emerge de observações durante a formação, auditorias ou avaliações.

Além disso, o operador está consciente do valor acrescentado da aprendizagem a partir de estratégias pessoais e tem oportunidades adicionais para aprender a partir de estratégias pessoais e, ao fazê-lo, pode obter uma compreensão detalhada do contexto de uma estratégia pessoal específica.

Lições e recomendações

O DSB formula três lições e uma recomendação.

As lições visam melhorar o aprendizado dos operadores. Os operadores podem concentrar-se em melhorar a disponibilidade de dados, aumentando a quantidade de dados e aumentando a diversidade das fontes de dados, ao mesmo tempo que devem também dar prioridade a perigos difíceis de identificar ou a ocorrências de baixa frequência com consequências potencialmente catastróficas para investigações e ações de mitigação.

A recomendação visa estimular o desenvolvimento de soluções técnicas a bordo para reduzir o risco de utilização de dados de decolagem errados.

Lições aos operadores

A investigação teve como foco o aprendizado do operador em relação ao risco de utilização de dados de decolagem errôneos. O Conselho de Segurança Holandês opta por extrair lições para os operadores em vez de fazer recomendações, porque as lições se aplicam a muitos operadores que baseiam a sua abordagem de segurança no mesmo quadro regulamentar existente. Portanto, as lições são universalmente aplicáveis.

A falta de dados pode dificultar a aprendizagem quando se trabalha com uma abordagem de segurança baseada em dados. O Conselho de Segurança Holandês identifica as seguintes lições para lidar com a falta de dados e melhorar a aprendizagem dos operadores:

1- Aumentar a quantidade de dados através do reforço da comunicação de ocorrências e do desenvolvimento de uma ferramenta de análise de dados de voo em que os dados de voo são combinados com dados externos;

2- Aumentar a diversidade das fontes de dados para evitar pontos cegos nos tipos de ocorrências. Aprender com o trabalho realizado pode gerar lições complementares únicas ao aprendizado com as ocorrências. As estruturas de diálogo e discussão com os colaboradores diminuem o limiar para que estes levantem ideias e preocupações, o que pode contribuir para a aprendizagem integral em vez da aprendizagem processual; e

Dado que pode ser difícil aumentar a disponibilidade de dados, o Conselho sugere que a seguinte abordagem seja adotada simultaneamente com as ações acima mencionadas:

3- Priorizar perigos difíceis de determinar ou ocorrências de baixa frequência com consequências potencialmente catastróficas para investigações e ações de mitigação.

Recomendações

O uso de dados errôneos de desempenho de decolagem é uma questão de segurança de preocupação geral e não específica de qualquer tipo de aeronave. A Agência da União Europeia para a Segurança da Aviação (EASA) espera que o software e os sistemas das aeronaves forneçam barreiras rígidas contra a entrada errada de dados no futuro.

Em 2020, o DSB recomendou que a EASA desenvolvesse requisitos para sistemas de bordo. No entanto, as soluções técnicas levarão algum tempo a serem desenvolvidas e implementadas na regulamentação.

A fim de acelerar a disponibilidade de sistemas técnicos e de software a bordo, a indústria da aviação necessita desenvolver soluções técnicas para evitar a utilização de dados de decolagem errados. Esta investigação conclui que a ferramenta de aplicação de desempenho da Embraer pode ser melhorada de modo que as seleções erradas sejam menos prováveis de ocorrer ou mais facilmente detectadas.

A Embraer iniciou o desenvolvimento dessas melhorias, que deverão ser implementadas em 2024. Portanto, o Dutch Safety Board não faz recomendação sobre esse assunto e incentiva a Embraer a continuar desenvolvendo melhorias para a ferramenta de aplicação de desempenho.

A investigação também mostra que a Embraer não tem planos de desenvolver sistemas de bordo que forneçam barreiras rígidas contra a entrada errônea de dados, ao passo que alguns outros fabricantes o fazem. Portanto, o Conselho de Segurança Holandês faz a seguinte recomendação para a Embraer:

– Iniciar o desenvolvimento de um sistema de bordo independente que detecte erros grosseiros de entrada no processo de cálculos de desempenho de decolagem e/ou alerte a tripulação de voo sobre acelerações anormalmente baixas para a configuração real do avião, bem como comprimento de pista disponível insuficiente.

Murilo Basseto
Murilo Bassetohttp://aeroin.net
Formado em Engenharia Mecânica e com Pós-Graduação em Engenharia de Manutenção Aeronáutica, possui mais de 6 anos de experiência na área controle técnico de manutenção aeronáutica.

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